Fiquei impressionado com a Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk, de Nicolai Leskov (1831-1895).
No Brasil, Leskov é certamente um dos menos conhecidos dos gigantes russos, embora o público das letras e humanidades tenha lido a seu respeito o antológico ensaio de Walter Benjamin: O narrador – considerações sobre a obra de Nikolai Leskov[1]. O mesmo se deu comigo, só conhecia Leskov pelos comentários do grande ensaísta alemão.
Tinha um exemplar de Lady Macbeth[2] estacionado em minha estante. Tradução do genial Paulo Bezerra.
Li-o em três dias e repito: fiquei impressionado com o texto. Por sua crueza, objetividade e humor negro surpreendentes, viscerais: como o é o melhor da literatura russa, com seu reconhecido espírito patético.
Sobre a singularidade da literatura russa, comentou Auerbach em Mimesis:
“Parece que os russos conservaram para si uma imediaticidade das vivências como já era difícil encontrar na civilização ocidental no século XIX; um estremecimento forte, vital, ou moral, ou espiritual, atiça-os imediatamente nas profundezas dos seus instintos, e eles caem num instante de uma vida calma e uniforme, por vezes quase vegetativa, para precipitar-se nos mais terríveis excessos, tanto práticos quanto espirituais.”[3]
Essas palavras explicam perfeitamente a pulsão básica da novela de Leskov, onde tudo é brutal, violento, inacreditavelmente intenso.
A Lady Macbeth de Leskov é Catierina Lvovna, uma moça pobre de vinte e quatro anos que se casa com Zinóvi Izmáilov, comerciante abastado e já com mais de cinquenta, passando a viver com ele e o sogro.
Aí a descrição do casamento, na primeira página da narrativa:
“Casaram-na com o nosso comerciante Izmáilov, de Tuskara, província de Kursk, não por amor ou qualquer atração, mas sem quê nem pra quê, simplesmente porque Izmáilov pedira sua mão, e, sendo ela pobre, não precisaria ficar escolhendo marido.”
A vida nesse casamento é típica dos matrimônios burgueses dos romances realistas do século XIX – monótona, estática, desprovida de emoções e enlevos –, vida que levou personagens como Luísa, em O primo Basílio, de Eça de Queirós e Ema, em Madame Bovary, de Flaubert, a encontrarem no adultério o seu ponto de fuga, sua possibilidade de arrebatamento e experimentação erótico-amorosa autêntica. E foi mesmo com o Realismo que se deu definitivamente um enfoque sério à infeliz condição das mulheres no casamento tradicional, prenunciando as conquistas feministas do século XX. A prosa realista – Ana Karênina e outros de Tolstói, A dócil e outros de Dostoiévski, narrativas de Tchekhov e de Machado de Assis – aborda o conflito entre desejo feminino e casamento convencional, ente interesse erótico-amoroso e matrimônio burguês, questionando duramente a estrutura patriarcal.
Mas a Lady Macbeth de Leskov é um caso à parte. Num primeiro momento – que vivenciamos como algo muito breve –, temos a ilusão de estar em um mundo ao gosto de Eça de Queirós: com o marido sempre ausente, Catierina se envolve com Serguiêi, o rapagão conquistador que é empregado de Zinóvi Izmáilov. A moça se apaixona. É prosa de Queirós. Surgem os obstáculos para a plena realização dos desejos e Catierina reage. Sua reação não é de Luísa, nem de Ema, nem Ana: sob o impulso da mais completa obstinação, a jovem Lvovna mata. E mata não apenas uma vez. E mata sem pudor, sem remorso e até mesmo sem medo: mata para ver-se livre e poder amar livremente. Mata como ama, loucamente.
A reação do leitor diante de tal obstinação desvairada é basicamente manter um riso assustado, até o fim do livro.
Um colega alertou-me que o desfecho da trama ia me surpreender. Estava certo. Terminei o livro ontem à noite. Estou ainda estupefato.
Abaixo, um trecho da genial adaptação de Macbeth pelo diretor Roman Polanski (1971). Esta fala da Lady Macbeth shakespereana, interpretada pela atriz Francesca Annis, revela a obstinação fundamental da heroína de Leskov: