Em homenagem a Pessoa, alguns pitacos lusófonos

No último dia 13, comemoraram-se os 123 anos de nascimento de Fernando Pessoa, considerado, ao lado de Camões, o maior poeta da literatura portuguesa. Leitores importantes, no mundo todo, reconhecerem em Pessoa um dos maiores talentos de toda a história da arte.

A língua portuguesa, claro, foi um dos elementos limitadores para uma maior difusão da obra do poeta, provavelmente menos conhecido na Europa que Neruda e Borges, apesar de representar, em termos de inovação estética, uma contribuição no mínimo à altura.

Apesar de ser a quinta mais falada do mundo e a mais falada de todo o hemisfério  sul,  a língua portuguesa é inexpressiva nos meios acadêmicos, desinteressante para os editores de países não lusófonos e muito pouco falada e também muito pouco conhecida pelos falantes desses países.

Explicar a limitada difusão do grande poeta Fernando Pessoa é mais ou menos o mesmo que explicar a mínima penetração dos grandes autores brasileiros – Machado de Assis é um bom exemplo – entre leitores estrangeiros. Os casos de Woody Allen e Philip Roth, exemplos de leitores célebres de Machado, são exceções.

Lembro que em minhas poucas e limitadas pesquisas pelas livrarias do centro de Paris (em 2006), por exemplo, não encontrei um título sequer do velho Machado nas seções de autores latino-americanos, onde ficam em geral os escritores brasileiros. Na seção de poesia estrangeira de uma dessas livrarias, encontrei alguma coisa de Fernando Pessoa, mas confesso que não lembro bem o quê.

Alguém teve mais sucesso que eu nesse tipo de pesquisa? Favor deixar registrado aqui, como uma forma de consolo.

Mas o que quero mesmo neste post é ressaltar a grandeza (e não a difusão limitada) das letras e da cultura lusófonas, a partir de algumas indicações:

Primeiramente: a leitura de um texto que postei aqui mesmo no Prefácio em 19 de fevereiro, sobre a expressividade da poesia de Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa:

Álvaro de Campos e a poética do desespero

Em segundo lugar: recomendo aos amantes da MPB um passeio pelo Youtube para conhecer (ou relembrar) a beleza das interpretações que Maria Bethânia fez dos poemas de Fernando Pessoa, seja  cantando ou declamando.

Comentário rápido: teriam os baianos herdado diretamente dos portugueses essa capacidade para falar de modo tão expressivo e comovente do mar, como o fazem Caymmi, Caetano e Bethânia, para ficar em alguns poucos exemplos?

Outra questão rápida: terão as letras portuguesas lugar de destaque nesse tipo de abordagem ou isso é impressão minha? Portugal, que se fez e se definiu pelos seus múltiplos périplos, que se perdeu e reinventou-se em outras terras, ou seja, que foi uma nação basicamente navegadora, e o Brasil, maior costa litorânea do mundo, que atrai o mundo todo para suas lindíssimas praias, figurariam de fato entre os países que mais falaram e/ou que mais falaram bem – em livros, poemas e canções e até mesmo em filmes – sobre esse misterioso gigante líquido – O MAR?

Minha última dica: por todas as questões mencionadas acima, inspiradas pela poesia de Fernando Pessoa (que aliás morreu cedíssimo: aos 47 anos de idade),  reproduzo aqui um vídeo do grupo português Madredeus, pérola da lírica portuguesa, com a música Ao longe o mar (a letra segue logo abaixo).

Saudações lusófonas!

Ao longe o mar

Composição : Pedro Ayres Magalhães

Porto calmo de abrigo
De um futuro maior
Inda não está perdido
No presente temor

Não faz muito sentido
Já não esperar o melhor
Vem da névoa saindo
A promessa anterior

Quando avistei
Ao longe o mar
Ali fiquei
Parada a olhar

Sim, eu canto a vontade
Canto o teu despertar
E abraçando a saudade
Canto o tempo a passar

Quando avistei
Ao longe o mar
Ali fiquei
Parada a olhar

Quando avistei
Ao longe o mar
Sem querer deixei-me
Ali ficar

A língua portuguesa na imprensa brasileira: um caso de descaso

Já estou estarrecido, e aliás há um bom tempo, com o quanto as questões ligadas à linguagem, e em particular à língua portuguesa, são sistematicamente maltratadas pela nossa imprensa de modo geral. Digo a grande imprensa, não alguns bons e bem intencionados sites, revistas e colunistas, gente que discute de modo amplo, científico ou minimamente sério a natureza complexa, polimorfa e dinâmica da linguagem.

O fato é que essa gente é exceção.

O que tenho visto desde os anos 90, especialmente com a relativa popularidade que ganhou o programa Nossa Língua Portuguesa, da TV Cultura, é a disseminação do “Fenômeno Pasquale”: a tendência das mídias – impressa, televisiva e  radiofônica – terem lá o seu Supergramático de plantão, para iluminar os pobres mortais usuários do idioma sobre o que é certo e o que é errado no “bom falar lusitano”. Um insistente interesse em reforçar a vertente normativa, prescritiva da língua.

Não poderia ser diferente, uma vez que a indústria midiática não dá voz aos estudiosos que queimam suas pestanas surpreendendo-se com os lances curiosos, os volteios mágicos e caprichosos dessa “donna mobile” que é a língua (qualquer língua, não só a nossa, diga-se de passagem), mas sim a meros reprodutores da norma padrão, pessoas contratadas para mostrar ao cidadão que ele pode ser capaz de “melhorar” seu modo de falar, bastando apenas que siga atento o que indicam as lições.

Sim, é uma verdadeira autoajuda linguística o que se vê difundido por aí. Nesses meios, ninguém discute sequer a variabilidade do que é considerado certo e errado. Ninguém discute que falar e escrever são coisas muito diferentes. Ninguém dá um toque para o espectador/leitor/ouvinte de que aquele português normativo é coisa de uma gramática específica – importante, claro, mas limitada, restrita. Ninguém diz (isso é quase inimaginável) que há pontos polêmicos entre os autores das gramáticas, que eles não têm muita certeza em relação a uma série de aspectos do idioma. Sobretudo, não se discute nesses programas ‘pasqualinos’* o que considero central: a norma padrão é algo construído arbitrariamente, ou seja, algo definido num momento histórico, por um grupo de pessoas, por um tipo de relação com a linguagem, ou seja, por uma cultura.

O recente caso do livro Por uma vida melhor, de Heloísa Ramos (distribuído pelo MEC, através do Programa Nacional do Livro Didático para a Educação de Jovens e Adultos, a 484.195 alunos de 4.236 escolas), que questiona a ideia de correção linguística, pôde, nos últimos dias, revelar, perfeitamente, o comportamento da grande imprensa quando o assunto é o ensino e o debate sobre o nosso idioma.

No rádio (na Jovem Pan, por exemplo), ouvi jornalistas esbravejarem contra o que, equivocadamente, consideram um “vale-tudo” do ensino do português. Um descaso com o trabalho do MEC, da autora, da academia. Um descaso. E um ato de irresponsabilidade. Na semana passada, uma aluna minha, assustada, veio dizer que, pelo que pôde entender no noticiário, agora ninguém mais aprenderia gramática na escola. Sim, de fato, o modo costumeiramente apocalíptico (sensacionalista) com que a imprensa aborda alguns assuntos produz esse tipo de interpretação.

Inevitável pensar que, mais de um século depois da cultura oratória simbolizada por Rui Barbosa, a qual valorizava a solenidade e a formalidade como valores em si, o jornalismo da grande imprensa – justamente ele, que tantas vezes se diz a voz do povo e tanto se diz reivindicador da democratização da expressão – representa, em certo sentido, o que há de mais atrasado em termos de debate cultural. Num momento em que dezenas de livros didáticos (inclusive por indicação do MEC, e isso há mais de uma década) e mesmo gramáticas  incorporam em seu discurso os avanços trazidos pela Linguística, relativizando a noção de certo e errado e propondo debates ricos e mais amplos que o mero correcionismo linguístico, tratar a língua (a escrita e a falada) no Brasil como algo estanque soa vergonhoso, de um amadorismo e de uma falta de informação que deveria envergonhar os redatores. Por isso digo que o jornalismo das grandes mídias brasileiras – muito mais do que a escola ou a academia, como se costuma pensar – está parado no século XIX, empatado nos critérios estéticos da tradição oratória de Rui Barbosa.

Posto aqui uma entrevista com quem entende do assunto: o professor Ataliba Teixeira de Castilho, exemplo de empenho e seriedade na abordagem de nossa língua:

*Que o Professor Pasquale Cipro Neto não me leve a mal. É visível, ao longo do tempo, sua preocupação com as variáveis do português e o respeito que tem por elas. O fato é que ele desencadeou, querendo ou não, um surto de abordagem corretiva de nossa língua que só vem crescendo nos últimos anos.

Coração das palavras, de Mário Viaro

Reproduzo abaixo o excelente artigo do filólogo Mário Viaro (de quem tive a honra de ser aluno um dia), retirado do site da Revista Língua Portuguesa.

Segue abaixo:

Coração das palavras

A longa história dos derivados do termo “coração”, órgão com núcleo semântico misto: porque se refere a algo que é concreto, mas em parte também abstrato
por Mário Eduardo Viaro

Não é incomum encontrarmos pessoas encantadas com as etimologias. A sua capacidade de associações e de explicações é tão grande, que, desde a Antiguidade, pelo menos desde as justificativas dos nomes pessoais no Gênesis ou desde o diálogo platônico do Crátilo, temos amostras desse fascínio. Quando se desenvolveram as chamadas leis fonéticas para os estudos etimológicos, no século 19, muita fantasia foi abandonada e uma segurança científica foi paulatinamente desenvolvida. Ainda hoje, os amantes da etimologia não estão livres de associações duvidosas, imprecisas ou até errôneas, mas conhecer a rede de cognatos de um termo continua sendo uma viagem pelos tempos e valores.
A palavra coração, por exemplo, nos ensina muito. Apesar de próxima do espanhol corazón, é um pouco diferente das outras línguas vindas do latim: francês coeur, italiano cuore, catalão cor, provençal cor, romanche cor ou cour, friulano cûr. O romeno tem outro étimo, uma vez que diz inima, que provém do latim anima, “alma”.

De cor
A palavra latina era cor, da qual as línguas-irmãs do português não se afastam muito. Mas, para se chegar ao espanhol, é preciso partir de um outro étimo, que foi reconstruído pelas leis fonéticas como *coratio ou, mais precisamente, por meio da forma acusativa *corationem. Do acusativo provém a esmagadora maioria das palavras não-eruditas do português. Essa forma acusativa indicava inicialmente apenas a palavra sendo usada como objeto direto ou direção de um movimento. Aos poucos, foi assumindo todas as posições na frase. A terminação *-atio(nem) é um sufixo formador de palavras abstratas.

Como isso é possível? De fato, a etimologia parecerá fantasiosa se não houver outras formas paralelas que a justifiquem. Ora, o coração e a cabeça são partes do corpo que têm um núcleo semântico misto: em parte se referem a algo concreto; em parte, a algo abstrato: a cabeça não é só o rosto, os cabelos ou o crânio, mas a sede dos pensamentos, da mesma forma que o coração não é apenas o órgão, mas a sede dos sentimentos. Também cabeça tem uma etimologia semelhante: a palavra latina caput sobrevive no romeno cap, mas, nas demais línguas, há outras etimologias, como no francês tête, italiano testa, que vêm de um uso latino (como gíria) da palavra testa, “tipo de vaso de argila, caco, telha” (da mesma forma que dizemos hoje faço o que me der na telha).

Cabeça e coração
Para se chegar a cabeça em português ou cabeza em espanhol, parte-se de *capitia, que tem uma terminação -ia, igualmente formadora de abstratos. Coração e cabeça são partes especiais do nosso corpo que podem conduzir a essa reconstrução por meio de abstratos, diferentemente de partes que não permitem facilmente essa leitura (cotovelo, pulmão etc.). No entanto, as palavras latinas cor e caput sobrevivem em expressões portuguesas como falar de cor, isto é, a partir do coração, ou de cabo a rabo, ou seja, da cabeça até o rabo. Da expressão de cor nasceu o verbo decorar e o povo não tardou em tachar pejorativamente o ato de decorar um assunto, comparativamente inferior ao de dominá-lo, com o sonoro decoreba.

Mas cuidado: decorar uma casa não tem nada a ver. Vem do latim decus (acusativo decorem), que quer dizer “enfeite”. Não se informar quanto a isso dá margem a explicações fantasiosas. Nem tudo que soa parecido está relacionado.
Analisemos mais de perto a palavra latina cor. Seu radical é, na verdade, cord- e provavelmente era assim que se pronunciava num período arcaico do latim, tendo perdido a última consoante (*cord > cor). Prova disso é o plural de cor, a saber, corda, apenas para citar um caso da flexão da palavra.

Daí quando dizemos que alguém é cordial, queremos dizer que suas atitudes provêm do coração. A palavra não existia entre os antigos, mas desenvolveu-se na Idade Média. Concordar com alguém é partilhar do mesmo coração, isto é, das mesmas idéias e sentimentos; discordar, por sua vez, é o movimento contrário. Os dois verbos já existiam em latim: concordare/discordare. Quantos pares de palavras assim não se formaram a partir desse prefixo com- que reúne, concilia, congrega e dis- que espalha, dissipa, dispersa: convergir / divergir, compor / dispor, contribuir / distribuir etc. Quando todos concordam, há concórdia, quando todos discordam, há discórdia. Mesmo em assuntos de gramática, quando se fala da concordância nominal, ali está, no fundo, a compatibilidade entre as palavras, como se elas tivessem um coração.

Variantes
No latim ainda havia outras palavras parecidas que, por acaso, não foram ressuscitadas pelos românticos: vecordia era a ausência de coração, a loucura, a insensatez; socordia (ou secordia), o afastar-se do coração, a covardia, a indolência, a apatia. Ao contrário dessa última palavra, um adjetivo *coraticum, “próprio do coração”, desenvolveu, em francês, a palavra courage, que veio para o português sob a forma coragem.

Já a palavra misericórdia sobrevive ainda hoje: a primeira parte da composição é a palavra miser, “pobre, miserável, lamentável”, ou seja, ter misericórdia é ter o coração contrito. O alemão, imitando essa palavra, criou a palavra Barmherzigkeit, composta de erbarmen “ter piedade”, Herz “coração” e os sufixos formadores de abstratos femininos -ig+keit.

Ir para perto do coração de alguém, ou seja, das idéias e dos sentimentos do outro, fazendo, assim, desaparecer as diferenças, é fazer um acordo. Quem concorda, aliás, é cordato. Em latim, cordatus é, no entanto, quem tem coração, melhor dizendo, raciocínio: é quem é prudente, sábio, sagaz.

Um acordo entre as notas musicais é um acorde, palavra que veio do francês accord. Dessa palavra formou-se a palavra alemã Akkordion, que, via francês, accordéon, chegou ao português como acordeom.

Trazer de volta ao coração lembranças perdidas é recordar. Em espanhol, diz-se, no entanto, para este sentido, acordar. Já o português acordar vem de acordado, palavra que no século 13 tinha o mesmo sentido do cordatus, ou seja, quem tem o juízo aguçado. Só está plenamente acordado quem tem a razão em pleno funcionamento, assim como esperto e despertar tem uma semelhança formal.

Outras línguas
A palavra latina cor, sob a forma antiga *cord, encontra parentes mais antigos em outras línguas: no germânico se dizia *hert (gótico hairto, inglês heart, alemão Herz, holandês hart, sueco hjärta, islandês hjarta, norueguês e dinamarquês hjerte); em eslavo, *serd (russo serdce, polonês serce, tcheco e eslovaco srdce, esloveno e croata srce, búlgaro sarce); no grego *kard (antigo kardía, moderno kardiá), o armênio sirt, o lituano sirdis, o letão sirds e línguas tão antigas quanto o hitita karts e o sânscrito hrd remontam a um indo-europeu *krd, *kerd, mostrando, dessa forma, quão longe uma palavra pode penetrar no passado, da mesma forma que a profusão de idéias que se lhe associam mostram o quão vivas eram e ainda são as línguas. O ditado está errado: nem tudo que está longe dos nossos olhos, está, portanto, longe do coração

“Champanha em Paris”, de Cláudio Moreno

Reproduzo mais um artigo do professor Cláudio Moreno, bem adequado para as próximas semanas, em que a champanha marca presença nos festejos.

Boas festas a todos.

Segue o texto do professor:

Champanha em Paris

Apesar do sucesso dos espumantes nacionais, o Doutor explica por que não há problema algum em utilizarmos o termo “champanha” para designá-los.

Dezembro chegou, e com com ele chegaram as festividades de fim de ano, com suas alegrias e chatices costumeiras. De uma dessas típicas festas de encerramento, promovida por um grande empresa de publicidade local, brotou a mais pitoresca pergunta que recebi até agora (e isso que o mês mal está começando…): “Professor, minha firma ofereceu ontem um coquetel luxuosíssimo; tinha camarão à vontade e serviram Veuve Clicquot do início ao fim. Eu não estou dizendo isso para contar vantagem, mas para que o senhor entenda a discussão em que me meti, ao comentar, simplesmente, que não havia champanha nacional que chegasse aos pés daquela que estávamos tomando. Primeiro o diretorzinho de mídia, que não gosta de mim, veio dizer, com uma pedra na mão, que o certo não era aquela, mas aquele champanha, no masculino — mas essa nem chegou a se criar, porque bastou alguém lembrar que o senhor defende para champanha a livre escolha entre masculino e feminino, e o baixinho se aquietou na hora. Mas depois o próprio chefe, que estava na rodinha, levantou uma tese que me pareceu interessante: não podemos falar em champanha nacional porque isso não existe, já que champagne é uma marca registrada, de propriedade da França, e só pode ser usada quando estivermos falando da legítima; para falar do produto nacional, só podemos empregar espumante. O senhor concorda?”.

Não, meu caro amigo, é claro que não concordo; a língua é soberana e não dá a mínima para meros acordos e regulamentos de propriedade industrial. Como a indústria vinícola brasileira não pode, por razões legais, chamar seus produtos de champanha, champanhe ou champagne, adotou a denominação genérica de [vinho] espumante. É assim que consta nos rótulos e no material promocional. Nossos falantes, no entanto, muitos antes de ocorrerem esses embates jurídicos, sentiram a necessidade de um vocábulo que lhes permitisse falar dessa bebida, e para isso incorporaram ao léxico do idioma o vocábulo champanha, como querem uns, ou champanhe, como querem outros (quanto ao gênero, veja minha explicação aqui). Friso que não se trata da bebida, mas da palavra; mesmo que a Roederer Cristal, que bebo nos dias gordos, venha da França, não posso viver sem um termo nosso para utilizar em frases do tipo “a verdadeira champanha vem da região de Champagne, a Campanha lá deles”, ou “ele só toma champanha paraguaia“, ou “nos demais países da comunidade européia, a champanha assume nomes locais, já que champagne é uma appellation contrôlée“, ou “a champanha nacional é vendida sob o nome de espumante“. No rótulo do uísque que aprecio está escrito whisky; no conhaque que eu gostaria de ter a meu lado, diante da lareira, deverá estar escrito, obrigatoriamente, cognac, ou nem chego perto. Nosso produtor não pode escrever champanha na garrafa; nós, simples civis, usaremos a palavra que que nos der na veneta.

Esta confusão entre a língua e a realidade é a mesma que levou um daqueles gramáticos rabugentos do centro do país a afirmar que papa não tem feminino porque jamais uma mulher assumiu o trono de São Pedro (apesar das lendas em contrário). Ora, isso não importa, porque a linguagem é muito maior que a realidade, permitindo que falemos no que existe ou no que nunca existiu. Quando mais não seja, precisamos do feminino papisa para poder dizer “Nunca houve uma papisa até hoje”, ou “A história da papisa Joana é uma lenda sem fundamento”, ou “Já tivemos vários papas, mas nenhuma papisa“.

Como um assunto puxa outro, o problema do gênero de champanha acabou levantando dúvida semelhante com relação a Paris: A Paris de hoje ou O Paris de hoje? Paris antiga ou Paris antigo? Parece óbvia a resposta? Pois não é. Entre outros, optam pelo masculino Vieira (“no mesmo Paris”), Eça de Queirós (“com conhecimento de todo o Paris”, “Oh, este Paris, Jacinto, este teu Paris!”, “aquele Paris ainda agitado“, “neste velho Paris”), Alencar (“Fizeram do Rio de Janeiro um pequeno Paris de bulevar”). Optam pelo feminino Nabuco (“essa impressão de arte que corre por cima da velha Paris toda como um friso grego”) e Coelho Neto (“Escolheu uma rua da velha Paris, apertada e sombria”). Esta hesitação, que não é usual entre nós (costumamos atribuir às cidades o gênero feminino), tem origem no próprio Francês. De um lado, De Gaulle, no seu famoso discurso de agosto de 1944, fala de “Paris ultrajado, Paris destroçado, Paris martirizado, mas Paris libertado pelas próprias mãos”. Do outro, a famosa Mistinguett já cantava, em 1926, “Paris, reine du monde/ Paris c’est une blonde” — o que, sem o ritmo e a rima originais, vem dar em vernáculo algo como “Paris, rainha do mundo/Paris é uma loira“. Aqui, em Portugal ou na França, cabe ao falante escolher.

“Presidente ou presidenta”, texto de Cláudio Moreno

REPRODUZO ABAIXO TEXTO COLHIDO NO SITE “SUA LÍNGUA”, DO PROFESSOR CLÁUDIO MORENO. PARA VARIAR, MORENO CONSEGUIU ALIAR ERUDIÇÃO A CAPACIDADE ANALÍTICA.

BOA LEITURA. E VISITEM O SITE DO PROFESSOR. VALE A PENA.


PRESIDENTE ou PRESIDENTA Dilma? Finda a eleição, abre-se um verdadeiro plebiscito entre os falantes; o resultado, que só conheceremos com o tempo, pode apontar a vitória de uma das duas formas ou, o que é mais provável, um honroso empate entre elas.

Conhecido o resultado das eleições, a vitória da ministra Dilma Rousseff suscitou uma questão que anda na boca das gentes e faz meu telefone tocar de dez em dez minutos: afinal, é presidente ou presidenta?

Como já expliquei numa coluna sobre generala, os tempos modernos assistiram a uma ascensão feminina irreversível. Há mais de vinte anos as mulheres do planeta — especialmente no Ocidente — vêm conquistando, assim de mansinho, as mais altas posições na escala de poder, antes reservadas exclusivamente para o sexo frágil (título que há muito os homens surrupiaram das mulheres). Hoje não constitui novidade alguma encontrar uma mulher no cargo de prefeito, de vereador, de deputado, de governador (o leitor há de notar que aqui o masculino se refere ao cargo, não à pessoa que o ocupa); nada mais justo, portanto, que recebam o tratamento linguístico adequado e sejam chamadas de prefeitas, vereadoras, deputadas e governadoras.

É muito importante lembrar o que ocorreu com o vocábulo primeiro-ministro, que passou por várias etapas antes de conquistar definitivamente o direito a ser usado no feminino. Quando o mundo começou a falar em Indira Gandhi, eleita em 1966, a imprensa brasileira foi apanhada de surpresa e saudou-a inicialmente como “o primeiro-ministro Indira“. O absurdo da situação levou alguns a ousarem uma combinação híbrida, cruza de jacaré com cobra-d’água: “a primeiro-ministro Indira“. Esta forma esquisita foi a gota derradeira, o passo decisivo para a metamorfose final, pois a não-concordância do artigo com o substantivo, escandalosa demais para ser aceita por qualquer ouvido normal, forçou a flexão natural para “a primeira-ministra Indira“. Quando Golda Meir e Margaret Thatcher apareceram no cenário mundial, o nosso léxico já tinha absorvido plenamente a inovação. E presidente, como fica?

A rigor, podemos deixá-lo na forma invariável, assim como fazemos com a maioria dos vocábulos derivados dos antigos particípios presentes: o/a viajante, o/a estudante, o/a gerente, o/a assistente. Contudo, sendo a adaptação e a evolução as duas características mais importantes de um idioma vivo como o nosso, é natural que vá crescendo, pouco a pouco (como tudo o que a língua faz), a tendência a flexionar em gênero alguns desses vocábulos tradicionalmente considerados uniformes. Ao lado de mestre surgiu mestra, forma cuja aceitação foi facilitada pelo extraordinário prestígio que desfrutam as heroicas professoras que nos ensinaram a ler e a escrever — mas o mesmo ainda não ocorreu com chefa, forma em que muitos ainda farejam um viés (ô, palavrinha pedante!) pejorativo. O prezado leitor pode ter certeza, porém, que a resistência é temporária, pois chefa tem a seu favor o fato de ser uma flexão formada dentro das regras internas do idioma (no mundo vegetal, diríamos que é uma plantinha do bem, nativa e espontânea, e não uma espécie exótica ou transgênica, sempre suspeita). Em breve este feminino será aceito no clube das formas cultas; o brasileiro, então, de acordo com seu gosto e sua intenção, poderá escolher entre ela ou a forma genérica chefe para designar uma mulher que exerce um cargo de chefia.

“Poderá escolher” — aqui é que bate o ponto. Não vejo por que reclamar quando um velho galho produz um novo rebento, pois isso significa que o repertório que a língua nos oferece acaba de ficar mais rico. Da costela de parente acabou nascendo o feminino parenta; há quem não use, mas ele está aí, agradando a muito bom escritor. Assim também presidenta, que figura, aliás, tanto no Aurélio quanto no Houaiss. Quem preferir, trate o vocábulo como um comum-de-dois (“substantivo que tem a mesma forma para o feminino e para o masculino”), cuidando apenas em flexionar os artigos e os adjetivos que o acompanham (o presidente eleito, a presidente eleita); quem, no entanto, achar que presidenta é mais adequado para marcar o coroamento da ascensão feminina (esta parece ser a opção de Dilma), ou que soa melhor, etc. e tal, pode ficar tranquilo, que tem padrinhos poderosos. A partir desta data, cada vez que alguém optar por uma ou por outra forma estará participando de imenso plebiscito silencioso, que acabará, com o tempo, determinando o destino das duas.

“Sua língua”, site de Cláudio Moreno

Em minha opinião o melhor site para se aprender e também para se refletir sobre a norma culta e sobre algumas curiosidades da língua portuguesa. Portanto, para quem já cansou de me pedir essa indicação, mando aí o link:

http://wp.clicrbs.com.br/sualingua/

O que eu mais gosto no trabalho de Cláudio Moreno é que ele não é apenas um reprodutor de regras, mas alguém que pensa sobre a língua, polemiza, tem opiniões próprias.

Para dar um exemplo: ele defende que a grafia de substantivos que se referem a idiomas deveriam todos ser iniciados com maiúscula – Espanhol, Russo, Japonês – , como modo de marcar a diferença em relação aos adjetivos gentílicos, os quais têm a função de indicar a proveniência de algo/alguém. Acho o argumento sustentável.

Chama-me a atenção o modo como Cláudio Moreno aborda o Novo Acordo Ortográfico, destacando tanto seus aspectos negativos como os positivos, e de um modo que põe em evidência para mim a sua maior virtude como professor e pensador da Gramática: sua capacidade de fazer-nos ver o quanto há de arbitrário e de impreciso nas descrições oficiais, de chamar a atenção para o fato de que a língua – mesmo a da Gramática – é muito mais instável do que em geral se pensa.

Quando me perguntam em sala de aula ou em roda de amigos sobre a hifenização dos substantivos compostos (antes ou depois do Acordo), sempre lembro da resposta de Cláudio Moreno a respeito:

A grande maioria dos compostos (…) é hifenizada por costume, apenas. Não há regra! Isso pode parecer assustador, mas na prática vai funcionando muito bem (principalmente porque ninguém tem segurança para cobrar o certo e o errado).

Essa honestidade em relação à imprecisão do sistema oficial é muito saudável – ela nos ajuda a desconstruir a imagem típica e pra mim abominável  do professor de Português como bedel da língua, o corretor diuturno da fala e da escrita, o guardião da integridade do idioma – essa imagem que concebe o professor como um juiz, não como um especulador, um pesquisador, alguém que indaga e que ensina a indagar, como deve ser, em minha opinião, todo professor.

Além de descrever as regras da Gramática (o que, para mim, é sua função sim), o professor de Português tem de deixar claro para seu meio (e não só para seus alunos) que a língua não é um templo hermético no qual poucos podem entrar – em outras palavras, que a língua não é um “problema dele”. Ela é uma ferramenta; não, ela é bem mais que isso: é constitutiva da natureza humana, uma de nossas marcas mais profundas.

A Gramática – isto é, uma das formas de uso da língua – deve ser descrita pelo professor e assimilada pelos alunos não como objeto monolítico, pronto e acabado, mas como um sistema em constate mutação.

E é isso o que dá a ler, às vezes explícita, às vezes implicitamente, o Professor Cláudio Moreno, com suas descrições  ricas e cuidadosas, as quais constantemente nos ensinam a indagar.