Agostinho Neto, poeta angolano

Nos países africanos lusófonos, a poesia foi produto direto da relação entre a palavra e o chão histórico de onde ela brotava.

O caso de Agostinho Neto é exemplar: foi o líder central na luta pela independência de Angola, mantendo, como cidadão e poeta, uma postura firmemente engajada, chegando, em 1975, nada menos que ao posto de primeiro presidente da história de seu país.

Retirei o texto abaixo (Certeza) da coletânea Poemas de Angola (Editora Codecri, 1975). É o primeiro livro de Agostinho Neto publicado no Brasil, com prefácio de Jorge Amado, autor que foi referência fundamental para angolanos, moçambicanos, cabo-verdianos e toda a literatura luso-africana engajada.

Faço questão de reproduzir algumas palavras do prefácio, cujo tom eufórico traduz bem o sentimento da época:

“Tomei a máquina de escrever para traçar algumas considerações literárias, pequeno prefácio à edição brasileira de uma coletânea de poemas de Agostinho Neto e acabei por não falar de poesia e, sim, de independência, luta, vitória e ameaças. Mas os poemas aí estão, belos profundos, africanos, poemas de guerra escritos por um homem que ama a paz. Ajudaram o povo na batalha da guerrilha, novamente serão canto de luta e de vitória na nova batalha já começada. Também a publicação desses poemas no Brasil é uma forma de contribuir para Angola independente, democrática e socialista.

Inexoravelmente 

como uma onda que ninguém trava

vencemos.

O Povo tomou a direção da barca.

Assim escreveu o poeta Agostinho Neto, assim há de ser sob o comando de Agostinho Neto, Presidente da República Popular Angolana, grande homem de nosso tempo.

                                                                      Jorge Amado

                                                      Salvador, novembro de 1975″

Certeza

Não me peças sorrisos

que ainda transpiro

os ais

dos feridos nas batalhas.

 

Não me exijas glórias

que sou eu o soldado desconhecido

da Humanidade.

 

As honras

cabem aos generais.

 

A minha glória

é tudo o que padeço e que sofri

os meus sorrisos

tudo o que chorei.

 

Nem sorrisos, nem glória.

 

Apenas um rosto duro

de quem constrói a estrada

por que há de caminhar

pedra após pedra

em terreno difícil.

 

Um rosto triste

por tanto esforço perdido

– o esforço dos tenazes

que à tarde se cansam.

 

Uma cabeça sem louros

porque não me encontrei

no catálogo

das glórias humanas.

Não me descobri na vida

e selvas desbravadas

escondem os caminhos

por que hei de passar.

 

Mas hei-de encontrá-los

e segui-los

seja qual for o preço.

 

Então

num novo catálogo

mostrar-te-ei

o meu rosto

cercado de ramos de palmeira

e terei para ti

os sorrisos que me pedes.

Corsino Fortes, poeta cabo-verdiano

Mais um pitaco lusófono.

Corsino Fortes, nascido em 1933, é um poeta e político cabo-verdiano.

 

Reproduzo aqui a primeira parte da série Do nó de não ser ao ónus de crescer,  que  integra “Pão & fonema” (1974), e um link para uma entrevista com Corsino Fortes, realizada em 2010, pela Radiotelevisão Caboverdiana, em homenagem aos 77 anos do poeta.

Uma das mais brilhantes expressões literárias luso-africanas, a poesia de Fortes pode ser descrita como uma grande comunhão entre criação artística e utopia revolucionária.

Fortes fez parte da geração de autores africanos que lutaram pelo fim da colonização portuguesa, geração que viu a produção poética como inseparável da reconstrução política e simbólica dos países lusófonos da África, entre os quais figura também Agostinho Neto, importante poeta e político angolano.

Aventurar-se pela literatura em português de outros sistemas literários é uma experiência que envolve identificação e estranhamento ao mesmo tempo: como dizia meu professor de Literatura Portuguesa, o poeta Horácio Costa, é uma experiência que gera em nós a rica sensação de “ver o outro no mesmo”.

Abaixo, o poema e o link da entrevista:

 

Do nó de ser ao ónus de crescer 

ILHA

Do nó de ser ao ónus de crescer

Do dia ao diálogo

Da promoção à substância

Romperam-se

As artérias

Em teu patrimônio

Agora povo agora pulso

agora pão agora poema

Ilha

Ilhéu ilhota

noite

noite alta

E o batuque não pára

Em nossa ancas

AGORA POVO AGORA

Que as colinas nascem

na omoplata dos homens

Com um cântico na aorta

Árvore & tambor tambor & sangue

Punho

pulso de terra erguida

Agora

No crânio da Boa Vista

Naufragam mastros e caravelas

E

O mar é rosto que advoga

Entre os tambores e as ilhas em matrimónio

Agora povo agora pulso

agora pão agora poema

Ilha

Ilhéu ilhota

noite

noite alta

E o batuque não pára

nas nossas ancas de donzela

AGORA PULSO AGORA

Que todo o pão é exequível

Depois da árvore antes do tambor

Depois da fonte depois do fonema

Antes da gengiva

dente e embrião

Que morde

Na mó de pedra[1]

lasca e lisa

O tegumento[2] na sua casca

Agora

Que a ilha cresce na viola do exílio

E

No violão do trovador

Um coração de napalm[3]

Agora povo agora pulso

agora pão agora poema

Ilha

Ilhéu ilhota

noite

noite alta

E o batuque não pára

Em nossas ancas

AGORA PÃO AGORA

Que o pilão viaja com pés de Portinari

Ultrapassando o abcesso

Das ribeiras em viagem

Com hélices de pedra

Ao redor da pedra

E teias de aranha no poente da boca

Agora

Que navios descem

Cadamosto

As terras de pozolana[4]

Carregados de cio E selo branco

E ressonam

Osso osso de caprino sono

E

O milho é datio pro solvendi

Com o timbre de moeda na retina

A usura dos mercados debaixo da língua

Agora povo agora pulso

agora pão agora poema

Ilha

Ilhéu ilhota

noite

noite alta

E o batuque não pára

nas nossas ancas de donzela

AGORA POEMA AGORA

Que do marulho

às pedras de sílaba longa

Os joelhos rompem

ilhas da tua boca

O violão da unha

a viola e o vento

Viola do tempo ao tempo grávida

De sub

ou

de substância

E todo o fósforo Que soma

A árvore do teu lábio

Ao tambor de tal tâmara

E

Do som E da saliva

Volva o ovo o colmo

Que te apelidam

Do fonema ao fruto

Dedo a dedo polegar e seiva

Na tosse tosse da carne óssea

Tossindo verde

De gema-fogo no poço dos joelhos…

Agora povo agora pulso

agora pão

agora poema agora

 

 

 


[1] Mó: espécie de tanque onde se espremem e se reduzem a líquido certos frutos, esp. as uvas:

[2] Tegumento: o que cobre o corpo do homem e dos animais (pele, pêlos, penas, escamas).

[3] Napalm: gasolina gelatinizada e espessada por sais do ácido naftênico e palmítico, empregada em bombas incendiárias e lança-chamas.

[4] Pozolana: produto de origem piroclástica, que se encontra nas imediações de Pozzuoli (Itália), e que, misturado com cal, se usa como cimento hidráulico.

Entrevista da Radiotelevisão Caboverdiana

Em homenagem a Pessoa, alguns pitacos lusófonos

No último dia 13, comemoraram-se os 123 anos de nascimento de Fernando Pessoa, considerado, ao lado de Camões, o maior poeta da literatura portuguesa. Leitores importantes, no mundo todo, reconhecerem em Pessoa um dos maiores talentos de toda a história da arte.

A língua portuguesa, claro, foi um dos elementos limitadores para uma maior difusão da obra do poeta, provavelmente menos conhecido na Europa que Neruda e Borges, apesar de representar, em termos de inovação estética, uma contribuição no mínimo à altura.

Apesar de ser a quinta mais falada do mundo e a mais falada de todo o hemisfério  sul,  a língua portuguesa é inexpressiva nos meios acadêmicos, desinteressante para os editores de países não lusófonos e muito pouco falada e também muito pouco conhecida pelos falantes desses países.

Explicar a limitada difusão do grande poeta Fernando Pessoa é mais ou menos o mesmo que explicar a mínima penetração dos grandes autores brasileiros – Machado de Assis é um bom exemplo – entre leitores estrangeiros. Os casos de Woody Allen e Philip Roth, exemplos de leitores célebres de Machado, são exceções.

Lembro que em minhas poucas e limitadas pesquisas pelas livrarias do centro de Paris (em 2006), por exemplo, não encontrei um título sequer do velho Machado nas seções de autores latino-americanos, onde ficam em geral os escritores brasileiros. Na seção de poesia estrangeira de uma dessas livrarias, encontrei alguma coisa de Fernando Pessoa, mas confesso que não lembro bem o quê.

Alguém teve mais sucesso que eu nesse tipo de pesquisa? Favor deixar registrado aqui, como uma forma de consolo.

Mas o que quero mesmo neste post é ressaltar a grandeza (e não a difusão limitada) das letras e da cultura lusófonas, a partir de algumas indicações:

Primeiramente: a leitura de um texto que postei aqui mesmo no Prefácio em 19 de fevereiro, sobre a expressividade da poesia de Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa:

Álvaro de Campos e a poética do desespero

Em segundo lugar: recomendo aos amantes da MPB um passeio pelo Youtube para conhecer (ou relembrar) a beleza das interpretações que Maria Bethânia fez dos poemas de Fernando Pessoa, seja  cantando ou declamando.

Comentário rápido: teriam os baianos herdado diretamente dos portugueses essa capacidade para falar de modo tão expressivo e comovente do mar, como o fazem Caymmi, Caetano e Bethânia, para ficar em alguns poucos exemplos?

Outra questão rápida: terão as letras portuguesas lugar de destaque nesse tipo de abordagem ou isso é impressão minha? Portugal, que se fez e se definiu pelos seus múltiplos périplos, que se perdeu e reinventou-se em outras terras, ou seja, que foi uma nação basicamente navegadora, e o Brasil, maior costa litorânea do mundo, que atrai o mundo todo para suas lindíssimas praias, figurariam de fato entre os países que mais falaram e/ou que mais falaram bem – em livros, poemas e canções e até mesmo em filmes – sobre esse misterioso gigante líquido – O MAR?

Minha última dica: por todas as questões mencionadas acima, inspiradas pela poesia de Fernando Pessoa (que aliás morreu cedíssimo: aos 47 anos de idade),  reproduzo aqui um vídeo do grupo português Madredeus, pérola da lírica portuguesa, com a música Ao longe o mar (a letra segue logo abaixo).

Saudações lusófonas!

Ao longe o mar

Composição : Pedro Ayres Magalhães

Porto calmo de abrigo
De um futuro maior
Inda não está perdido
No presente temor

Não faz muito sentido
Já não esperar o melhor
Vem da névoa saindo
A promessa anterior

Quando avistei
Ao longe o mar
Ali fiquei
Parada a olhar

Sim, eu canto a vontade
Canto o teu despertar
E abraçando a saudade
Canto o tempo a passar

Quando avistei
Ao longe o mar
Ali fiquei
Parada a olhar

Quando avistei
Ao longe o mar
Sem querer deixei-me
Ali ficar

Viva Piva!

Roberto Piva, poeta marginal, surrealista, beatnik, pornográfico, apaixonado, profundamente paulistano, nasceu em 1937 e morreu no mês de julho do ano passado.

O vídeo abaixo, de Ugo Giorgetti, são leituras preciosíssimas que o próprio Piva fez de seus poemas. A apresentação é de outro importante poeta contemporâneo: Cláudio Willer.

Trem sujo da Leopoldina

Nicholas Rabinovitch, aluno meu, indicou-me este vídeo: declamação pungente do poema “Trem sujo da Leopoldina”, de Solano Trindade, por Raquel Trindade, sua filha. O texto pode ser inscrito, como o próprio Nicholas sugeriu, na larga e riquíssima tradição lírica do trem como símbolo da modernidade brasileira.

A dica surgiu numa aula sobre o famosíssimo “Trem de ferro”, de Manuel Bandeira, e sua relação com o “O trenzinho do caipira”, de Villa-Lobos, e ainda com a adaptação da obra de Villa-Lobos para MPB, realizada por Edu Lobo e Ferreira Gullar.

Poderíamos acrescentar a essa tradição o melancólico “Trem das onze”, de Adoniran Barbosa e talvez muitas outras obras, mas fiquemos por ora com com esta valiosíssima dica do rapaz, um texto e uma declamação imperdíveis:

“Cantada”, de Ferreira Gullar

Para os que acompanham os artigos atuais de Ferreira Gullar na Folha de São Paulo e se lamentam, peço clemência:  Gullar já foi outro, um dos maiores, talvez o maior poeta brasileiro dos últimos vinte anos.

Essa sua Cantada sempre soou pra mim como a melhor possível.

Cantada

Você é mais bonita que uma bola prateada
de papel de cigarro
Você é mais bonita que uma poça dágua
límpida
num lugar escondido
Você é mais bonita que uma zebra
que um filhote de onça
que um Boeing 707 em pleno ar
Você é mais bonita que um jardim florido
em frente ao mar em Ipanema
Você é mais bonita que uma refinaria da Petrobrás
de noite
mais bonita que Ursula Andress
que o Palácio da Alvorada
mais bonita que a alvorada
que o mar azul-safira
da República Dominicana

Olha,
você é tão bonita quanto o Rio de Janeiro
em maio
e quase tão bonita
quanto a Revolução Cubana

Para quem tem interesse em conhecer melhor a produção de Gullar, deixo aqui um link:

Ferreira Gullar – Por ele mesmo

“Liberdade”, de Paul Éluard

Mais do que um poema, este texto de Paul Éluard, para mim e muitos outros leitores, é uma espécie de oração:

Liberdade

Nos meus cadernos de escola

Sobre a carteira nas árvores

Sobre a neve sobre a areia

Grifo teu nome

Em toda página lida

Em toda página em branco

Sem papel na pedra ou cinza

Grifo teu nome

Sobre as gravuras douradas

Sobre as armas dos guerreiros

Sobre a coroa dos reis

Grifo teu nome

Na floresta e no deserto

Sobre os ninhos sobre as gestas

Nos ecos da minha infãncia

Grifo teu nome

Nas maravilhas das noites

No pão branco das jornadas

Nas estações de noivado

Grifo teu nome

Nos fiapos de azul-celeste

No tanque solar bolor

No lago lua vibrante

Grifo teu nome

Nos campos nos horizontes

Nas asas dos passarinhos

Sobre os moinhos de sombras

Grifo teu nome

Em cada sopro de aurora

Sobre o mar sobre os navios

Na insensatez das montanhas

Grifo teu nome

Nas nuvens soltas revoltas

Na tormenta transpirada

Na chuva insistente e boba

Grifo teu nome

Sobre as formas cintilantes

Nas campânulas de cores

Por sobre a verdade física

Grifo teu nome

Sobre as veredas despertas

Nos caminhos desdobrados

Sobre as praças transbordantes

Grifo teu nome

Na lâmpada que se acende

Na lâmpada que se apaga

Nas casas cheias de gente

Grifo teu nome

No fruto cortado em dois

O do espelho e o do meu quarto

Na concha sem mim depois

Grifo teu nome

No meu cão terno e guloso

Mas sempre de orelha em pé

E patas destrambelhadas

Grifo teu nome

No trampolim da minha porta

Nos objetos familiares

Nas línguas do lume bento

Grifo teu nome

Em toda carne acordada

Na fronte dos meus amigos

Em cada mão que me afaga

Grifo teu nome

Na vidraça das surpresas

Sobre os lábios expectantes

Muito acima do silêncio

Grifo teu nome

Nos refúgios descobertos

Nos maus faróis desmontados

Nas paredes do meu tédio

Grifo teu nome

Sobre a ausência do desejo

Sobre a solidão desnuda

Nos descaminhos da morte

Grifo teu nome

No retorno da saúde

No risco que se correu

Na esperança sem lembrança

Grifo teu nome

E pelo poder de um nome

Começo a viver de fato

Nasci pra te conhecer

E te chamar

Liberdade

(Tradução de M. C. Ferreira)

Obra de René Magritte, mais um surrealista a cavar fissuras na "razão vigilante" e a nos convidar para o voo cego da utopia

 

“Balada dos enforcados”, arte e moralidade

François Villon nasceu em Paris no ano de 1430. De sua morte, são desconhecidas a data e a circunstância.

Dois aspectos centrais estão ligados ao nome desse homem: primeiramente, o de ser o primeiro poeta moderno da literatura francesa. Nas palavras de Otto Maria Carpeaux, é “um homem inteiramente moderno em pleno século XV: poeta nosso.”[1]

Segundo fato: François Villon era um criminoso. Boêmio, encrenqueiro, ladrão, assassino, uma criatura de reputação pouco louvável. Uma vida marcada por prisões, fugas e mentiras.

A presença indubitável de Villon entre a galeria dos gênios da arte nos traz uma questão intrigante: conseguimos aprovar uma obra cujo produtor reprovamos? Ou seja, como é ou como deve ser a relação que estabelecemos entre a apreciação de uma obra de arte e o nosso juízo acerca da pessoa que a produz?

Deixo a questão em aberto, para debatermos nos comentários.

Desenho de Goya

A Balada dos enforcados, reproduzido abaixo, é um dos pontos mais altos da poesia de Villon. Sobre ela, comentou Carpeaux:

(…) o malandro condenado, sabendo que a forca o espera, toma a liberdade de exprimir aqueles lugares- comuns de maneira diferente, quer dizer, pessoal.[2]

O texto foi colhido da antologia traduzida por Péricles Eugênio da Silva Ramos[3]:

Balada dos enforcados

Irmãos humanos que depois de nós viveis,

Não tenhais duro contra nós o coração,

Porquanto se de nós, pobres, vos condoeis,

Deus vos concederá mais cedo o seu perdão.

Aqui nos vede pendurados, cinco, seis:

Quanto à carne, por nós demais alimentada,

Temo-la há muito apodrecida e devorada,

E nós, os ossos, cinza e pó vamos virar.

De nossa desventura ninguém dê risada:

Rogai a Deus que a todos queira nos salvar!

Chamamo-vos irmãos: disso não desdenheis,

Apesar de a justiça a nossa execução

Ter ordenado. Vós, contudo, conheceis

Que nem todos possuem juízo firme e são.

Exculpai-nos – que mortos, mortos nos sabeis –

Com o filho de Maria, a nunca profanada;

A sua graça, para nós, não finde em nada,

No inferno não nos venha o raio despenhar.

Ninguém nos atormente a vida já acabada.

Rogai a Deus que a todos queira nos salvar!

A chuva nos lavou, limpou-nos, percebeis;

O sol nos ressequiu até à negridão;

Pegas, corvos cavaram nossos olhos – eis! –,

Tiraram-nos a barba, a bico e repuxão.

Em tempo algum tranqüilos nos contemplareis:

Para cá, para lá, o vento de virada

A seu talante leva-nos, sem dar pousada;

Mais que o dedal, picam-nos pássaros no ar.

Não queirais pertencer a esta nossa enfiada.

Rogai a Deus que a todos queira nos salvar!

 

Príncipe bom Jesus, de universal mandar,

Guardai-nos, ou o inferno então nos arrecada:

Lá nada temos a fazer, nada a pagar.

Homens, aqui a zombaria é inadequada:

Rogai a Deus que a todos queira nos salvar!


[1] CARPEAUX, Otto Maria. História da literatura ocidental. Rio de Janeiro, Alhambra, 1985, p. 265.

[2] Idem, p. 266.

[3] VILLON, François. Poemas de François Villon. São Paulo, Art Editora, 1986.

Cor local (7)

Bernardo Guimarães, protocolar, popular & marginal

Além de literato, Bernardo Joaquim da Silva Guimarães (1825-1884) foi juiz, jornalista, crítico literário e professor. Era um homem modesto, tendo recusado várias vezes o título de barão, oferecido a ele por ninguém menos que o próprio Imperador Dom Pedro II, seu mais eminente admirador.

Bernardo Guimarães escreveu romances, poemas, contos e crônicas. Mas foi A escrava Isaura, de 1875, quem lhe deu de fato notabilidade e o transformou numa espécie de escritor protocolar do século XIX, símbolo de uma literatura que podemos chamar standard para seu tempo, paradigmática do Romantismo e mesmo da ficção brasileira, de tal modo que, mais de um século depois de sua publicação, em 1976, A escrava Isaura é adaptada por Gilberto Braga para telenovela da Rede Globo e, extravasando portanto o âmbito literário, vira uma ficção de multidões – multidões não apenas brasileiras, lembremos, multidões mundiais, até mesmo de países como China, que teve  um bilhão de espectadores e que publicou uma tiragem do livro de mais ou menos 300 mil exemplares. Cerca de 150 países assistiram à versão global do romance de Guimarães, o que representou, para muita gente, o primeiro contato com imagens televisivas do Brasil. Isso nos obriga a concluir que muitos estrangeiros tiveram, como primeira imagem do Brasil, nossa sociedade escravocrata do século XIX, não a do Brasil dos anos 70, época da telenovela. Sendo assim, se considerarmos a escravidão negra como solo básico da nação brasileira, sua condição de ser, sua constituição mais básica – como já apontaram tantas vezes nossos historiadores e cientistas sociais –, é possível pensar que aqueles espectadores estrangeiros de A escrava Isaura conheceram o Brasil já pelo seu elemento fundante – para usarmos a expressão de Sérgio Buarque de Hollanda: conheceram “As raízes do Brasil”. Qual terá sido sua reação? O que pensaram sobre nós?[1] Questões profundamente instigantes para se pensar a identidade nacional.

Rubens de Falco e Lucélia Santos contracenam na adaptação da Globo

Essa versão de A escrava Isaura foi reprisada cinco vezes no Brasil, a primeira entre 1976 a 1977 e a última em 1990, como parte das comemorações da Rede Globo pelos seus 25 anos de existência. A Rede Record, depois de imbroglio judicial com a Globo, relançou a telenovela em 2004, obtendo altos índices de audiência e grande aceitação inclusive do público português. É bom lembrar que antes dessas duas adaptações televisivas, A escrava Isaura já havia sido adaptada várias vezes para o cinema, sem grande sucesso de bilheteria, o que não quer dizer muita coisa num país de pouca tradição cinéfila.

Não vi nenhuma dessas adaptações, li apenas o livro de Bernardo Guimarães e é bom lembrar que ele não é exatamente a expressão de inconformismo abolicionista, pois sua Isaura é destacada entre os outros servos por possuir qualidades particulares, uma “escrava menos escrava” que as outras.

Como nos lembra o grande crítico Alfredo Bosi, “O nosso romancista estava mais ocupado em contar as perseguições que a cobiça de um senhor movia à bela Isaura que em reconstruir as misérias do regime servil. E, apesar de algumas palavras sinceras contra as distinções de cor (cap. XV), toda a beleza da escrava é posta no seu não parece negra, mas nívea donzela, como vem descrita desde o primeiro capítulo:

A tez é como o marfim do teclado, alva que não deslumbra, embaçada por uma nuança delicada, que não sabereis dizer se é leve palidez ou cor-de-rosa desmaiada. (…) Na fronte calma e lisa como mármore polido, a luz do ocaso esbatia um róseo e suave reflexo; di-la-íeis misteriosa lâmpada de alabastro guardando no seio diáfano o fogo celeste da inspiração.

Mas, ainda conforme Alfredo Bosi: “Seria néscio falar em ‘preconceito’ como atitude etnicamente responsável. Pelo contrário, em Rosaura, a Enjeitada, obra da maturidade, Bernardo chega a dizer: ‘Em nossa terra é uma sandice querer a gente gloriar-se de ser descendente de ilustres avós; é como dizia um velho tio meu: no Brasil ninguém pode gabar-se de que entre seus avós não haja quem não tenha puxado flecha ou puxado marimba’. O que explica a beleza branca ‘branca’ de Isaura é a permanência de padrões estéticos europeus. E mais uma razão para marcar o caráter híbrido dessa novelística sertaneja e semipopular de que Bernardo foi o primeiro representante de mérito.”[2]

Terão as adaptações – filmes ou telenovelas – transformado o drama amoroso de Bernardo Guimarães em libelo antiescravista ou foi mantida, apesar da distância temporal e das consequentes e enormes alterações que a temática da escravidão recebeu, a abordagem de Isaura como exceção à regra, segundo a eurocêntrica convenção romântica, esperável numa escrita protocolar como a de Bernardo Guimarães, mas condenável em nossos dias? Peço a opinião do leitor que conheça alguma dessas adaptações.

As obras mais lidas de Bernardo Guimarães são A escrava Isaura e O seminarista, este também adaptado para o cinema, em 1979, e apontado por Antonio Candido como a melhor obra do autor[3]. Nela, Guimarães investiga as tensões entre o amor e o celibato clerical, tema abordado de modo mais cru e contundente no famosíssimo O crime do padre Amaro, de Eça de Queirós, e que também foi base para algumas narrativas de Machado de Assis, por exemplo os consagrados O caso da vara e Dom Casmurro. Possivelmente Bernardo Guimarães tenha sido entre nós o primeiro ou pelo o primeiro importante autor a abordar essa problemática entre desejo e dogma religioso.

Cópia em VHS do filme "O seminarista" (1977), de Geraldo Santos Pereira

Candido destaca a qualidade de Guimarães como contador de histórias: “boa prosa de roça, cadenciada pelo fumo de rolo que vai  caindo no côncavo da mão ou pela marcha das bestas de viagem, sem outro ritmo além do que lhes imprime a disposição de narrar sadiamente, com simplicidade, o fruto de uma pitoresca experiência humana e artística.”[4] Se existe algo de interessante nesses livros de argumentos ingênuos e em geral terrivelmente inverossímeis, livros de análises psicológicas pobres e de verborragia irritante, Candido parece ter sintetizado perfeitamente o que pode ser atraente neles: eu chamaria de convite para o conforto, para o tom caseiro e casual, aconchegante como uma visita à casa dos avós.

O Bernardo Guimarães moço curtiu a vida boêmia da estudantada paulistana de 1840-50, viveu as folias e a aura inspiradora que a minúscula, fria e vazia São Paulo daquele tempo incutia nas naturezas afeitas à introspecção.

São Paulo, conhecidana época  como Burgo Estudantil, afora o núcleo formado em torno da Faculdade São Francisco, com sua rotina intelectual e literária, era, nas palavras de Álvares de Azevedo “Um bocejar infinito”.

E era com Álvares de Azevedo e com Aureliano Lessa que Bernardo Guimarães dividia suas noitadas boêmias. Esses três, inseparáveis, referidos como O Triunvirato, projetaram escrever um livro a três, mas não passou de projeto. O melhor da poesia dessa geração talvez seja mesmo A lira dos vinte anos, com seus suspiros profundos e alguma boa ironia.

Mas há outra coisa, impublicável na época e que talvez tenha interesse para o leitor de hoje: uma poesia nonsense e boca-suja, estranha, bem estranha para sua época, recebendo de alguns o nome de pré-surrealismo, produção de um outro Bernardo Guimarães – não o imortal e protocolar autor de tramas novelescas, mas o poeta jovem, cômico e desarmado com seus bestialógicos. Para intelectuais como Haroldo de Campos, essa verve cômica da poesia de Bernardo Guimarães é a melhor parte de sua obra.

Veja abaixo a primeira parte de A orgia dos duendes, poema que faz parte desse flanco singular da criação de Guimarães:

A orgia dos duendes

I

Meia-noite soou na floresta
No relógio de sino de pau;
E a velhinha, rainha da festa,
Se assentou sobre o grande jirau.

Lobisome apanhava os gravetos
E a fogueira no chão acendia,
Revirando os compridos espetos,
Para a ceia da grande folia.

Junto dele um vermelho diabo
Que saíra do antro das focas,
Pendurado num pau pelo rabo,
No borralho torrava pipocas.

Taturana, uma bruxa amarela,
Resmungando com ar carrancudo,
Se ocupava em frigir na panela
Um menino com tripas e tudo.

Jetirana com todo o sossego
A caldeira da sopa adubava
Com o sangue de um velho morcego,
que ali mesmo co’as unhas sangrava.

Mamangava frigia nas banhas
Que tirou do cachaço de um frade
Adubado com pernas de aranhas,
Fresco lombo de um frei dom abade.

Ventou sul sobiou na cumbuca,
Galo-preto na cinza espojou;
Por três vezes zumbiu a mutuca,
No cupim o macuco piou.

E a rainha co’as mão ressequidas
O sinal por três vezes foi dando,
A coorte das almas perdidas
Desta sorte ao batuque chamando:

“Vinde, ó filhas do oco do pau,
Lagartixas do rabo vermelho,
Vinde, vinde tocar marimbau,
Que hoje é festa de grande aparelho.

Raparigas do monte das cobras,
Que fazeis lá no fundo da brenha?
Do sepulcro trazei-me as abobras,
E do inferno os meus feixes de lenha.

Ide já procurar-me a bandurra
Que me deu minha tia Marselha,
E que aos ventos da noite sussura,
Pendurada no arco-da-velha.

Onde estás, que inda aqui não te vejo,
Esqueleto gamenho e gentil?
Eu quisera acordar-te c’um beijo
Lá no teu tenebroso covil.

Galo-preto da torre da morte,
Que te aninhas em leito de brasas,
Vem agora esquecer tua sorte,
Vem-me em torno arrastar tuas asas.

Sapo-inchado, que moras na cova
Onde a mão do defunto enterrei,
Tu não sabes que hoje é lua nova,
Que é o dia das danças da lei?

Tu também, ó gentil Crocodilo,
Não deplores o suco das uvas;
Vem beber excelente restilo
Que eu do pranto extraí das viúvas.

Lobisome, que fazes, meu bem
Que não vens ao sagrado batuque?
Como tratas com tanto desdém,
Quem a c’roa te deu de grão-duque?”


[1] A esse respeito, mas especificamente em relação à cultura russa, é imperdível a leitura de Relações literárias e culturais entre Rússia e Brasil, de Leonid A. Shur (Editora Elos), em que o autor analisa os contatos entre os dois países durante os séculos XVIII e XIX.

[2] BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. Editora Cultrix, p.139.

[3] CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. Editora Itatiaia, p. 216.

[4] IDEM, p. 212.