“Terra sonâmbula”, de Mia Couto


Capa da edição de 2007 da Companhia das Letras, na qual se encontra a seguinte nota: “A editora optou por manter a grafia do português de Moçambique”

Eis um livro que há pouco tempo não teria a menor chance de figurar no  Prefácio como uma indicação entusiasmada.

Passei a evitar Mia Couto após ler alguns textos da antologia Estórias abensonhadas, a qual conheci em 2002 e cujo título me pareceu de muito mau gosto. Terra sonâmbula, embora, ao contrário, sempre me tenha soado um bom título sedutor – belo achado ao gosto dos surrealistas ou do realismo mágico latino-americano -, não era suficiente para levar de novo ao autor.

Eis-me agora, dez anos depois, apaixonado por Terra sonâmbula, paixão intrigante porque implicou um processo de transformação conceitual e perceptiva, uma verdadeira revisão de gosto estético que, para ser franco, raras vezes experimento.

Além de ler um livro que me entusiasmou, Terra sonâmbula foi para mim uma espécie de renascimento como leitor. Considerei a experiência tão rica que, antes de abordar alguns aspectos da obra propriamente, gostaria de fazer uma explanação.  Peço licença ao leitor para isso.

Desejo versus dever?

É muito difundida a ideia – principalmente entre leitores mais jovens – de que a leitura obrigatória é desagradável, de que a obrigação torna menos intensa a relação do leitor com o livro ou diminui sua disposição para ler.

Não compartilho dessa opinião. Vou dizer meus motivos.

Como professor há mais de uma década, vejo brotar, a cada ano letivo, novos leitores apaixonados por obras que lhes chegaram às mãos por conta da “imposição” do programa escolar de leituras. Doistoiévski, Flaubert, Baudelaire, Kafka, Fitzgerald, Camus, Salinger, Fante, Philip Roth, Camões, Machado, Graciliano, Guimarães, Drummond, Bandeira, Cabral, Gullar, para ficar somente em alguns, durante todos estes anos vêm encontrando, “apesar” da  obrigatoriedade, trazendo alegrias evidentes, até mesmo leitores devotos.

Ponho “apesar” entre aspas porque acredito – como o poeta e ensaísta mexicano Octavio Paz e como a estudiosa brasileira Leyla Perrone-Moisés (que são, acima de tudo, dois grandes leitores) – que o ato de leitura é necessariamente também um ato de trabalho.

Acredito que as paixões fulminantes não nascem exclusivamente da escolha. Se assim fosse, as multidões que têm a TV como única fonte de vivência estética poderiam ser explicadas como um caso de opção, e não – o que acredito ser um motivo considerável – por uma falta estrutural de investimento e de sustentação de uma cultura de lazer. Quando falo em falta estrutural não penso só no governo e nas suas escolas, mas também na imprensa, sobretudo na TV – maior usina de lazer e de fomentação do imaginário nacional -, que tem consciência de sua missão formativa (e inclusive se arroga disso) enquanto, contraditoriamente, insiste na exibição do besteirol diário sob a leviana alegação de que se trata do “gosto do povo” e de que ela – TV- apenas procura atender o desejo das multidões.  (Também os grandes tiranos usaram e ainda usam dessa justificativa para cometer barbaridades impunes).

A contradição é evidente: para formar cidadãos,  é fundamental desafiar o senso comum, abdicar do sucesso imediato e seguro (obviamente acompanhado de lucro também imediato e seguro) em nome de uma transformação cultural que é obviamente mais lenta e mais complexa: fazer a multidão de telespectadores apreciar o bom cinema, a boa música, o teatro, a dança, as artes em geral, incluindo – por que não, se alguns raros lampejos de ousadia provam que isso funciona? – a literatura. A TV está empenhada nisso? Obviamente não. Ela não tem, portanto, papel formativo, não está interessada em ousar, em produzir impactos culturais. Está muito mais preocupada em garantir seus lucros.

Ao dizer, como justificativa para a insistência no besteirol, que atende ao  gosto da população, incorre-se em cinismo e também em preconceito. Não creio que todos – pobres e ricos – que digerem essa massa de lixo cultural gostem  propriamente do que vejam. É preciso, no mínimo, considerar a dificuldade de mensurar a preferência de um contingente tão grande de pessoas. Mais difícil ainda quando não há empenho em oferecer alternativas por parte dos que detêm o controle das mídias. Só é possível ter hipóteses: a mais forte para mim, entre outras, é a de que haja tendência a se consumir o que se tem à disposição, pelo que, por aparecer com insistência, acaba sendo visto como melhor.

Voltando ao senso de obrigação. A TV não figura na vida cultural dos indivíduos como um desafio intelectual, cognitivo ou existencial. Basta ligá-la e vê-la, ainda que com desagrado. Ela está longe de ser associada, em nossa sociedade, a uma ideia de dever.

Já o livro representa uma necessidade de entrega, de aclimatação, de predisposição, de participação – ou seja, de trabalho -, sobretudo quando se trata de uma obra de qualidade.

A descoberta de um mundo

“Quantos homens já não iniciaram uma nova era em suas vidas ao ler um livro?”  (Henry David Thoreau)

Quando era adolescente e aluno do ginásio (hoje Ensino Fundamental II), tive como tarefa escolar a leitura do romance Casa de pensão, do escritor maranhense Aluísio Azevedo. Fiquei intrigado com a indicação de uma obra que na época eu considerava antiga (hoje chamaria de literatura moderna).

Eu não era um leitor no sentido pleno da palavra, isto é, eu não decidia por conta o que queria ler. Lia os poucos livros que havia em minha casa – uns dez, no máximo, guardados pela minha mãe, que era e ainda é uma leitora bissexta. Lia também o que emprestavam meus amigos: basicamente livros da Série Vaga-lume da Editora Ática (os maiores de trinta e cinco devem se lembrar da coleção).

O livro de Aluísio Azevedo, que inicialmente me intrigava, em pouco tempo (logo nas primeiras páginas) revelou-se-me uma fonte de imenso prazer.

Lembro até hoje que o professor, sabendo de meu entusiasmo, espantou-se e, um tanto cético, indicou-me também a obra mestra de Aluísio: O cortiço. O livro me encantou ainda mais e me fez chegar ao O mulato,  primeiro romance do autor, além de me tornar, ainda aos quinze anos, um leitor voraz da prosa oitocentista: Eça de Queirós, Camilo Castelo Branco e outros.

Seria possível reduzir aquela oferta do professor à ideia de “obrigação”? Ou ainda: seria possível classificar o meu esforço (porque obviamente houve esforço) como uma tarefa sem papel significativo, um exercício  mecânico ou burocrático, com a finalidade apenas de agradar os mais velhos?

Não, não, nada disso: costumo pensar que com aquelas leituras começaram, em grande parte, a minha descoberta do mundo.

Esta foi a edição do “Casa de pensão” que li no ginásio, por indicação do professor de Português Dario Macri

Foi justamente uma lista de livros obrigatórios – para uma seleção de mestrado – que me levou à leitura de Terra sonâmbula.

Iniciei a leitura a contragosto, cheio de receios, mas, passadas poucas páginas, vi-me estupefato, impressionado com o texto.

Eis-me então boquiaberto diante de uma obra de Mia Couto, grato ao acaso e à obrigatoriedade da tal lista, que generosamente encaminhou-me para um livro fundamental, quando meu interesse ou meu instinto poderia facilmente derivar para uma outra escolha.

Conclusão: mesmo o leitor mais velho, “escolado”, deve desconfiar de sua capacidade de escolher e de seu poder de resistir ao que é imposto, ao que não é determinado pelas suas listas prévias.

Mais recentemente, como o leitor do Prefácio pode ter notado, vem crescendo minha vontade de conhecer a produção em língua portuguesa europeia e africana, sobretudo a do século XX e XXI. Entre as várias listas de autores que eu mesmo produzi, entretanto, o nome do moçambicano Mia Couto jamais esteve presente. É um autor importante, conhecido, muito citado, publicado por uma grande editora brasileira, a Companhia das Letras. Mas a experiência que tive, há dez anos, com Estórias abensonhadas, foi, desde a leitura do título, um imenso dissabor. Esse pequeno contato foi suficiente para eu passar a detestar o autor e comentar, com quem encontrasse, tratar-se de literatura de baixo quilate, imitação barata de Guimarães Rosa.

Hoje me pergunto se o que experimentei foi dissabor ou puro preconceito.

A mistura como bandeira poética

Com a prosa poética no centro de tudo, Terra sonâmbula fundamenta-se  no cruzamento de registros: o culto e o popular, o escrito e o falado, o mítico e o real.

Esse cruzamento – que se dá no plano imagético, sintático e vocabular -parece provar que esses diferentes registros não se opõem, mas sim se complementam. E essa complementaridade, parece-me, é a principal responsável pela eficácia do discurso.

A desqualificação que se baseia na semelhança da obra de Mia Couto com a de Guimarães Rosa é bastante problemática.

Primeiramente porque parte do pressuposto de que Guimarães Rosa está sozinho em algumas de suas principais escolhas estilísticas, pressuposto que desconsidera o complexo desenvolvimento de nosso Modernismo, que tem a mistura poética de registros como importante bandeira e encontra na prosa do  Mário de Andrade de Macunaíma e Contos de Belazarte um de seus pontos decisivos. Se considerado com cuidado, Mário de Andrade – sobretudo no caso de Belazarte – pode ser visto como manancial decisivo da carpintaria do mestre mineiro. Isso diminui o valor da obra de Guimarães?

A bandeira poética da mistura de registros é um dos aspectos decisivos também na formação da literatura luso-africana, na qual há, além da diversidade social do idioma português, a coexistência dele com vários outros idiomas. Se o modernismo brasileiro figurou como modelo para muitos autores luso-africanos, é mais certo dizer que ele fortaleceu ou intensificou uma tendência do que afirmar que a inaugurou. Suas principais contribuições funcionaram mais como confirmações solidárias do que já havia como busca, interesse latente ou mesmo expressão consolidada na África lusófona. É um caso em que, mais que influência, devemos falar em confluência.

Alargando nosso horizonte referencial, podemos ver que a tentativa de entender e incluir o homem pobre e analfabeto no corpo do discurso literário foi (e é ainda) uma das grandes missões da literatura lusófona. É natural que, nesse conjunto, semelhanças estilísticas apareçam: entre autores como Mário de Andrade, Guimarães Rosa, João Cabral de Mello Neto, José Luandino Vieira,  José Craveirinha, Manuel Ferreira ou Mia Couto.

Acalanto da Mãe-África

Claro, dizer que houve “imitação” é diferente de dizer que houve “imitação barata”, porque a segunda afirmação envolve um aspecto valorativo. Vamos a ele então. Obviamente é o mais difícil, e obviamente não conseguirei esgotá-lo.

Depois de aderir às malhas da sintaxe e sentir-me envolvido em sua musicalidade (sem ainda deixar de estranhar e até me incomodar eventualmente com algumas combinações lexicais, confesso), ocorreu-me que o livro, ao abordar a realidade de miséria e violência extremas, corria o risco de ser um exercício de embelezamento do mal, um discurso compensatório e oportunista, e que se encaixaria portanto na expressão feliz que a crítica de cinema Ivana Bentes usou para caracterizar parte da produção cinematográfica brasileira dos últimos anos:  “cosmética da fome” (1).

Eu me perguntava então se Terra sonâmbula se Terra sonâmbula seria mais um exemplo de tal categoria estética. A questão foi, ao longo da leitura, minha principal inquietação: seria o livro de Mia Couto um  exercício de estetização da precariedade, da dor, da violência e da miséria alheia, isto é, seria um movimento de aceitação, relativização da barbárie, transformado-a em música aprazível?

Terminado o livro, minha resposta agora é: NÃO.

Não se pode dizer que Terra sonâmbula atenua a tragicidade da realidade que representa. Se a leitura do mundo é marcado pela poesia, essa poesia está longe de significar embelezamento enganador, está longe de esconder o aspecto trágico dos acontecimentos e de ludibriar o leitor.

Sofrimento, dureza, violência, precariedade, falta. O incômodo permanece ao longo de toda a narrativa. A “estetização da barbárie” – no sentido de relativização ou diluição das tensões – não caracteriza absolutamente a obra de Mia Couto.

Publicação da editora  portuguesa Caminho, 2004

Minha redescoberta do mundo  

O livro se divide em dois núcleos narrativos.

Um deles é a história do garoto Muidinga e do velho Tuahir. Os dois  perambulam por um cenário de devastação, marcado pelo cheiro da morte, até que se abrigam na carcaça de um ônibus, onde dividem espaço com corpos carbonizados. O menino, temeroso, reclama; o velho, que dissimula preocupação e carinho com gestos e palavras ríspidas, exige silêncio, paciência resignação.

Um sinal de alento aparece entre esses dois:  é a leitura que Muidinga faz de uns cadernos que encontraram numa mala abandonada. São as notas de Kindzu, e constituem o segundo núcleo da história.

Os cadernos de Kindzu se intercalam com os capítulos da peregrinação sem rumo de Muidinga e Tuahir.

A narrativa do menino e do velho corresponde a um presente estático, com sua paisagem imóvel, a atmosfera de morte, indecisão,  desesperança. Já o núcleo de Kindzu é marcado por ações e por procuras mais específicas, ou seja, é um núcleo mais dinâmico. Essa variação de movimentos dá ritmo à composição de Mia Couto.

O núcleo de Tuahir e Muidinga é marcado mais pelas consequências da guerra, como se fosse o resultado de um processo. No núcleo de Kindzu o que vemos é o próprio processo se desenvolvendo: a guerra, suas abominações,  disputas, as idas e vindas de uma população que já não sabe mais dormir e portanto sonhar. Uma população sonâmbula.

Kindzu é ainda capaz de sonhar e, com seus escritos, compartilhar seus sonhos:

“Ponho o sonho, em sua selvagem desordem: eu estava descendo um vale molhado de tanta luz, cheio de manhã. Aquela parecia a primeira madrugada do mundo. A luz se espantava de sua própria estreia, experimentando sua grandeza ao iluminar as mais pequenas coisas. As cores, de tanto serem novas, se cambiavam incessantemente. Foi então que vi avançar um enorme grupo de pessoas, pobres, embrulhadas em cascas e fiapos. Eram centenas de centenas. Foram-me enchendo o sono À frente seguia o feiticeiro da minha aldeia. Envergava uma sarapilheira encardida, cujos farrapos poeiravam pelo chão. O adivinho olhou a terra como se dele dependesse o destino do universo. Pesava nos seus olhos a gravíssima decisão de criar um outro dia.”

Os escritos de Kindzu representam, para o velho e o menino, novos horizontes. Somente a palavra, em Terra sonâmbula, tem o poder de reordenar a existência, de ressignificá-la, acordar seus sentidos. É ela a única resposta ao sonambulismo da terra.

A certa altura, Tuahir comenta:

“O que faz andar a estrada? É o sonho. Enquanto a gente sonhar a estrada permanecerá viva. É para isso que servem os caminhos, para nos fazerem parentes do futuro.”

O escritor moçambicano Mia Couto nasceu em Beira, em 1955

E foi o próprio Mia Couto quem disse:

“Para se libertar da prisão que é a realidade fechada com a chave da razão, é preciso desvalorizar suas paredes”, (palestra de Mia Couto na UFMG, em julho de 2007)

Misturando mito e história, narrativa e poesia, Mia Couto oferece com Terra sonâmbula um monumento de inusitada beleza. Uma beleza que oferece à barbárie o único elemento que a literatura possui: a palavra. Essa arma indestrutível.

(1) Com esse termo Ivana Bentes procurou contrastar criticamente parte da produção atual do cinema brasileiro com a “estética da fome”, defendida por Gláuber Rocha nos anos 60.

Adeus, Columbus

Acabei de terminar a leitura do primeiro livro de Philip Roth: Adeus, Columbus. Como disse o escritor Saul Bellow, “é um livro de estreia, não de princiante”.

O livro é de 1959, mas foi publicado no Brasil apenas em 2006,  pela Companhia das Letras, em formato pocket, com a tradução de Paulo Henriques Britto.

Trata-se de uma antologia composta pela novela que dá nome ao livro – Adeus, Columbus – e  mais cinco contos: A conversão dos judeus, O defensor da fé, Epstein, Não se julga um homem pela canção que ele canta e Eli, o fanático.

Capa de uma edição francesa da obra de Roth, autor traduzido em vários países

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A obra bem poderia ter como subtítulo  “aspectos da cultura judaica nos Estados Unidos”, porque o que Roth faz basicamente é observar, por ângulos diferentes e com níveis variados de humor cáustico, os modos de vida dos judeus americanos: seus dogmas, seus hábitos – Roth talvez dissesse “suas manias” ou ainda “suas paranoias”. Quem conhece a crítica bem humorada de Woody Allen aos costumes judaicos passeará pelo livro de Roth com alguma familiaridade.

Comentários breves sobre os cinco contos:

A conversão dos judeus é uma sátira aos dogmas religiosos a partir do confronto entre um adolescente e um rabino, o que terá consequências absurdas. Em O defensor da fé, Roth ironiza os usos oportunistas da causa judaica, contando a história de militares, em plena guerra, que se aproveitam do fato de serem judeus para salvar a própria pele. Epstein é a história de um casal judeu de meia idade que começa a viver uma crise terrível depois que a mulher descobre que seu marido contraiu uma DST e que portanto, obviamente, a traiu. O resultado é absurdo. Em Não se julga um homem pela canção que ele canta vemos as consequências da ligação entre um “rapaz de família” e seus colegas de escola bad boys. Eli, o fanático é uma reflexão profunda a respeito da fé e dos dogmas a partir dos grandes contrastes marcados entre tradição religiosa e civilização moderna.

São todas narrativas intrigantes e instigantes, apresentando situações absurdas com consequências tragicômicas.

Mas para mim o ponto alto mesmo do livro é a novela Adeus, Columbus, o primeiro texto, mais longo que todos e muito mais vibrante.

A história é a do primeiro amor de Niel Klugman, contada por ele mesmo. A história que ele viveu com Brenda Patimkin.

Klugman é um bibliotecário pobretão, Brenda é de família riquíssima. Ambos são judeus.

Eis como é descrito o primeiro encontro, logo nas primeiras linhas:

A primeira vez que vi Brenda ela me pediu para segurar seus ócvlos. Então foi até a ponta do trampolim e, apertando os olhos, mirou a piscina; se estivesse vazia, Brenda não perceberia o fato, míope que era. Deu um belo mergulho e um instante depois voltava nadando para a beira da piscina, mantendo a cabeça, de cabelos avermelhados cortados curtos, erguida à frente, como se fosse uma rosa de caule longo. Rapidamente chegou à borda e veio ter comigo. “Obrigada”, disse, os olhos cheios d’água, mas não da piscina. Estendeu a mão para pegar os óculos, porém só os pôs nos lugar depois que me deu as costas e se afastou. Fiquei vendo-a ir embora. Suas mãos de repente apareceram atrás dela. Segurou a bainha do maiô com o polegar e o indicador e enfiou no devido lugar o pouco de carne que estava aparecendo. Meu sangue ferveu.

Brenda já aparece aí com algumas de suas marcas mais decisivas:  é desembaraçada (“despachada” é mais preciso), dissimulada, provocadora, sensualmente pueril, e pode com isso facilmente enlouquecer os sentidos do pobre Klugman.

Mas a sedução é também a da narrativa em si mesma sobre o leitor, que se sente imediatamente envolvido pelo texto. Não somente pelo que ele traz de mensagem sensual ou até sexual (vale lembrar que nesse texto não temos um Roth licencioso, como o de O complexo de Portnoy), mas pelo seu convite imperioso ao universo denso e delicado, sutil e sinuoso da inesquecível primeira experiência amorosa. Em tudo o que ela tem de hipnótico. Em tudo o que tem de caloroso. Para repovoar esse mundo de cheiros, cores, temperaturas, sons e ecos tão difusos só mesmo uma memória privilegiada – uma memória sinestésica, como a apresentada pelo narrador de Roth.

O mais fenomenal é que Roth visita esse universo delicado do primeiro amor sem se render ao sentimentalismo fácil, apresentando – já em seu primeiro livro – um verdadeiro exercício de fuga da pieguice, com sua voz despojada – mesmo quando abandona provisoriamente o humor e toca o puramente lírico. Isso acontece porque Adeus, Columbus é uma revisitação das histórias de primeiro amor, uma espécie de paródia, não exatamente no sentido de imitação cômica, mas no sentido de retomada, de homenagem, de releitura. Como se nos propusesse:  Vamos ver de fato como é esse negócio que chamam de primeiro amor.

A história de Niel não é exatamente a de Brenda. Brenda vive numa mansão de proporções infinitas (o leitor, se aventurando por ela, parece se perder em seus múltiplos cômodos). Niel é pobre, mora de favor na casa de uma tia. Essa tia, criatura neurótica, parece figurar na galeria das personagens de Allen, com seus rompantes patéticos dirigidos a Niel: “Uma criança na Europa dava pra fazer três refeições completas só com o que você deixa no prato.”

O mundo de Niel, que comparado ao dos Patimkins é um submundo, tem contato muito mais direto com mundos ainda mais subterrâneos – o dos negros pobres dos States, exemplificado na personagem graciosa do negrinho que adora as pinturas de Gauguin. Essa figurinha simpática a certa altura surge na biblioteca e, com seu carregado sotaque sulista, pergunta a Niel:

– Ô, onde é a seção de artipraste?

Niel num primeiro momento não entende – assim como o leitor – que o garoto, presença bastante improvável naquele ambiente letrado, procurava pela seção de artes plásticas.

Niel o conduz até ela e – novamente assim como o leitor – supreende-se com a enorme empolgação que o menino demonstra em relação às pinturas de Gauguin e com a assiduidade com que passa a frequentar aquela seção da biblioteca para admirar os habitantes do Taiti, espécie de oásis pictórico que o menino define como um lugar onde “ninguém vive gritando e berrando”, como provavelmente devia ser o seu mundo. E por um minuto consideramos o milagre da arte. Não na sacralidade do nome de Gauguin, não na burocracia biblioteconômica, não nos bancos da escola: mas na experiência viva e pura das formas e das cores como sonho e pulsão, como possibilidade de ressignificação da vida.

As pinturas do francês Paul Gauguin (1848-1903) encontram o olhar de um expectador muito improvável na narrativa de Roth

A vida do jovem Niel divide-se então entre dois mundos opostos: o da biblioteca frequentada pelo negrinho, com toda sua simplicidade, e o da mansão dos Patimkin, com toda sua opulência.

Mas e o amor, o primeiro – ELE -, que destino terá para Niel? Que destino terá para Brenda?, jovem despachada, desinibida, para quem o mundo parece estar disposto sempre como uma porta escancarada, à espera de seu triunfo.

Quem pensa, contudo, que Brenda é somente uma riquinha desmiolada se engana. Ela é espirituosa e é também enigmática – ela é, para o coração de um jovem, irresistível. E aí está também o trunfo de Roth: sua criatura feminina é apaixonante. Com ela, Niel (e o leitor, sempre seguindo os passos dele) tem a sensação de flutuar pelos espaços ou ser arrastado por uma corrente de água (a água, a piscina – presenças insistentes no texto), sempre numa aura fantasiosa, como se tudo fosse um sono bom, um sonho.

Essa sensação de sentidos dormentes, de atmosfera onírica me fez associar a novela de Roth ao filme de Benjamin Braddock A primeira noite de um homem, em que se apresenta um convite parecido para o dilatar de nossa percepção, fazendo-a captar os detalhes mínimos mas decisivos na primeira experiência amorosa – essa experiência que é mais resgatada pela memória difusa que pela lógica ordenadora da razão. Memórias que são borrões, não linhas.

“A primeira noite de um homem” (1967), de Benjamin Braddock, com o estreante Dustin Hoffman: o enredo é bem diferente da novela de Roth, mas a atmosfera onírica e inocente do amor na tenra idade parece ser a mesma

Como Capitu para Bentinho (Dom Casmurro, Machado de Assis) ou como Madalena para Paulo Honório (São Bernardo, Graciliano Ramos), Brenda será para Niel, eternamente, um mistério. Porque a imagem fulgurante do primeiro amor não é somente inesquecível – ela é também, cruelmente, incompreensível:

Como conhecê-la? eu me perguntava, pois enquanto ela dormia fiquei pensando que tudo o que eu sabia a seu respeito era o que se podia ver numa fotografia.

Entender o primeiro amor (seria essa a busca do Philip Roth maduro?) não é entender o outro, mas a si mesmo.

E por isso Niel conta sua história. Por isso conta a sua Bentinho. Por isso faz o mesmo Paulo Honório.

E não é o que fazemos, todos nós, dia após dia?