Retorno das férias: e as leituras

Foram muitas, essa é a verdade, caros leitores, as leituras de dezembro e janeiro.

Comecei o percurso lendo os poemas de Outro dia de folia, de Eduardo Lacerda, editor da Patuá, amigo meu e, segundo sua maior mentira, um não-poeta. Antes todos os poetas fossem não-poetas como ele!

folia

 

Os poemas de Eduardo Lacerda combinam bem o trabalho da lapidação, do cuidado na escolha com o efeito de espontaneidade, a impressão de um feliz acaso.

O eu-lírico, satírico, delicado ou melancólico, conduz o leitor para um abismo de dúvidas e desalentos, deixando escapar, na maior parte das vezes, um irresistível risinho de tudo.

 

Depois vieram as leituras teóricas.

Primeiramente, o brilhante livro de ensaios Cultura e sociedade no Brasil, de Carlos Nelson Coutinho (editora Expressão Popular). Uma abordagem lúcida e esclarecedora do processo de formação de nossa cultura, abordagem por vezes vinculada diretamente a escritores fundamentais para a construção do elemento “nacional-popular” na literatura brasileira, como Lima Barreto e Graciliano Ramos.  Leitura formativa, importantíssima.

Em segundo lugar, li Graciliano Ramos: um escritor personagem, de Maria Izabel Brunacci (editora Autêntica). Obra importante que relaciona as formas literárias do autor às estruturas sociais direta ou indiretamente vinculadas a elas. As reflexões sobre a particularidade da modernização no Brasil – seguindo a trilha de Sérgio Buarque de Holanda – são também significativas e dão boas lições.

Ainda no tópico Graciliano Ramos, tive a oportunidade de ler o livro Retrato fragmentado (editora Globo), de Ricardo Ramos, biografia de rara beleza e intensidade. Os “cacos” de memórias do filho de Graciliano oferecem-nos, em seu conjunto,  uma visão complexa e desmitificadora do escritor alagoano a partir de uma visão “de dentro” e portanto, muito especial. Alguns aspectos pessoais de Graciliano são, para seus leitores inveterados, imperdíveis.

retrato

Quem me instigou a ler o livro foi ninguém menos que Ricardo Ramos Filho, criatura gentilíssima, com quem tenho a honra de compor um grupo de estudos sobre a obra de Graciliano Ramos lá na USP. Bela dica, Ricardo, finalmente saldei minha dívida com essa leitura obrigatória.

Entre as muitas descobertas, o livro de Ricardo Ramos me fez conhecer um Graciliano apaixonado pela prosa de Marques Rebelo. Era o que faltava para fechar meu percurso de férias: li Os melhores contos de Marques Rebelo (editora Global).

Uma surpresa, uma grata surpresa tomar contato com a prosa tão viva do escritor carioca, uma espécie de Machado de Assis com frescor modernista.

rebelo

As narrativas de Rebelo conduzem o leitor pelo Rio de Janeiro dos anos 30 e 40 de modo tão vivo e realista que é inevitável a sensação de deslocamento no espaço e no tempo.

Destaco os contos Oscarina Estela me abriu a porta, que passaram a fazer parte definitivamente do que conheço de melhor na prosa em língua portuguesa. Um espetáculo narrativo! Cativante, divertido e comovente.

 

Não é à toa que o velho Graça dedicou-lhe tantos elogios.

E vocês, queridos leitores, o que têm a dizer desta vez ao Prefácio?

Cento e vinte anos de resistência

Em 27 de outubro de 1892, nasceu Graciliano Ramos, meu escritor brasileiro favorito.

O primeiro livro de Graciliano que li era um exemplar já malhado pelo tempo, que passou de meu avô para minha mãe: um Vidas secas de 1969, da editora Martins. O volume estava protegido com uma capa adicional de plástico, para que resistisse ao tempo. Resistiu. Está até hoje  inteiro.

Resistência, aliás, é uma palavra boa para o velho Graça. Seu estilo seco, duro, direto, compacto, verrumante, é capaz de fisgar adolescentes do Brasil de hoje, nas escolas e fora delas, como uma obra viva.

Resistência serve também para lembrar a enorme indisposição de Graciliano a ceder, na escrita, ao estilo aparatoso, rebuscado, cheio de pompa que predominava no Brasil da virada do XIX para o XX. Resistir, recusar esse estilo significou, na literatura e na vida de Graciliano, opor-se à falsa inteligência, a falsa complexidade, cujo fundo é a enganação, a mentira, a ostentação e a opressão. A falsa sofisticação das elites brasileiras de sempre que, por trás de seu verniz arrogante, esconde o espírito obtuso, o egoísmo indecente, a compreensão curta. Contra isso Graciliano lutou, obsessivamente.

Resistência ao arbítrio e ao totalitarismo do Estado de Vargas, que  atirou Graciliano na cadeia, sem qualquer acusação formal. Resistência também ao sectarismo do PCB, que lhe exigia uma literatura laudatória, quando para Graça o mais honesto, na ficção, era indagar. Mas na vida, como cidadão, em resistência ao comodismo e ao abstencionismo, Graciliano filiou-se ao PCB, defendendo abertamente o comunismo.

Um herói nacional? Tudo o que Graça mais detestaria. Um homem que se sentiu – em toda a sua estada no Rio de Janeiro e em suas (poucas) perambulações pelo mundo – eternamente sertanejo: rústico, seco, duro, como a sua prosa. Uma prosa que seguramente permanecerá, como resistência à pompa e às leituras simplificadoras da realidade.

***

Nota:

Em comemoração a esses 120 anos, a Boitempo Editorial acaba de lançar uma versão ampliada da brilhante biografia de Dênis de Morais O Velho Graça (já referida aqui no Prefácio).

“Terra sonâmbula”, de Mia Couto


Capa da edição de 2007 da Companhia das Letras, na qual se encontra a seguinte nota: “A editora optou por manter a grafia do português de Moçambique”

Eis um livro que há pouco tempo não teria a menor chance de figurar no  Prefácio como uma indicação entusiasmada.

Passei a evitar Mia Couto após ler alguns textos da antologia Estórias abensonhadas, a qual conheci em 2002 e cujo título me pareceu de muito mau gosto. Terra sonâmbula, embora, ao contrário, sempre me tenha soado um bom título sedutor – belo achado ao gosto dos surrealistas ou do realismo mágico latino-americano -, não era suficiente para levar de novo ao autor.

Eis-me agora, dez anos depois, apaixonado por Terra sonâmbula, paixão intrigante porque implicou um processo de transformação conceitual e perceptiva, uma verdadeira revisão de gosto estético que, para ser franco, raras vezes experimento.

Além de ler um livro que me entusiasmou, Terra sonâmbula foi para mim uma espécie de renascimento como leitor. Considerei a experiência tão rica que, antes de abordar alguns aspectos da obra propriamente, gostaria de fazer uma explanação.  Peço licença ao leitor para isso.

Desejo versus dever?

É muito difundida a ideia – principalmente entre leitores mais jovens – de que a leitura obrigatória é desagradável, de que a obrigação torna menos intensa a relação do leitor com o livro ou diminui sua disposição para ler.

Não compartilho dessa opinião. Vou dizer meus motivos.

Como professor há mais de uma década, vejo brotar, a cada ano letivo, novos leitores apaixonados por obras que lhes chegaram às mãos por conta da “imposição” do programa escolar de leituras. Doistoiévski, Flaubert, Baudelaire, Kafka, Fitzgerald, Camus, Salinger, Fante, Philip Roth, Camões, Machado, Graciliano, Guimarães, Drummond, Bandeira, Cabral, Gullar, para ficar somente em alguns, durante todos estes anos vêm encontrando, “apesar” da  obrigatoriedade, trazendo alegrias evidentes, até mesmo leitores devotos.

Ponho “apesar” entre aspas porque acredito – como o poeta e ensaísta mexicano Octavio Paz e como a estudiosa brasileira Leyla Perrone-Moisés (que são, acima de tudo, dois grandes leitores) – que o ato de leitura é necessariamente também um ato de trabalho.

Acredito que as paixões fulminantes não nascem exclusivamente da escolha. Se assim fosse, as multidões que têm a TV como única fonte de vivência estética poderiam ser explicadas como um caso de opção, e não – o que acredito ser um motivo considerável – por uma falta estrutural de investimento e de sustentação de uma cultura de lazer. Quando falo em falta estrutural não penso só no governo e nas suas escolas, mas também na imprensa, sobretudo na TV – maior usina de lazer e de fomentação do imaginário nacional -, que tem consciência de sua missão formativa (e inclusive se arroga disso) enquanto, contraditoriamente, insiste na exibição do besteirol diário sob a leviana alegação de que se trata do “gosto do povo” e de que ela – TV- apenas procura atender o desejo das multidões.  (Também os grandes tiranos usaram e ainda usam dessa justificativa para cometer barbaridades impunes).

A contradição é evidente: para formar cidadãos,  é fundamental desafiar o senso comum, abdicar do sucesso imediato e seguro (obviamente acompanhado de lucro também imediato e seguro) em nome de uma transformação cultural que é obviamente mais lenta e mais complexa: fazer a multidão de telespectadores apreciar o bom cinema, a boa música, o teatro, a dança, as artes em geral, incluindo – por que não, se alguns raros lampejos de ousadia provam que isso funciona? – a literatura. A TV está empenhada nisso? Obviamente não. Ela não tem, portanto, papel formativo, não está interessada em ousar, em produzir impactos culturais. Está muito mais preocupada em garantir seus lucros.

Ao dizer, como justificativa para a insistência no besteirol, que atende ao  gosto da população, incorre-se em cinismo e também em preconceito. Não creio que todos – pobres e ricos – que digerem essa massa de lixo cultural gostem  propriamente do que vejam. É preciso, no mínimo, considerar a dificuldade de mensurar a preferência de um contingente tão grande de pessoas. Mais difícil ainda quando não há empenho em oferecer alternativas por parte dos que detêm o controle das mídias. Só é possível ter hipóteses: a mais forte para mim, entre outras, é a de que haja tendência a se consumir o que se tem à disposição, pelo que, por aparecer com insistência, acaba sendo visto como melhor.

Voltando ao senso de obrigação. A TV não figura na vida cultural dos indivíduos como um desafio intelectual, cognitivo ou existencial. Basta ligá-la e vê-la, ainda que com desagrado. Ela está longe de ser associada, em nossa sociedade, a uma ideia de dever.

Já o livro representa uma necessidade de entrega, de aclimatação, de predisposição, de participação – ou seja, de trabalho -, sobretudo quando se trata de uma obra de qualidade.

A descoberta de um mundo

“Quantos homens já não iniciaram uma nova era em suas vidas ao ler um livro?”  (Henry David Thoreau)

Quando era adolescente e aluno do ginásio (hoje Ensino Fundamental II), tive como tarefa escolar a leitura do romance Casa de pensão, do escritor maranhense Aluísio Azevedo. Fiquei intrigado com a indicação de uma obra que na época eu considerava antiga (hoje chamaria de literatura moderna).

Eu não era um leitor no sentido pleno da palavra, isto é, eu não decidia por conta o que queria ler. Lia os poucos livros que havia em minha casa – uns dez, no máximo, guardados pela minha mãe, que era e ainda é uma leitora bissexta. Lia também o que emprestavam meus amigos: basicamente livros da Série Vaga-lume da Editora Ática (os maiores de trinta e cinco devem se lembrar da coleção).

O livro de Aluísio Azevedo, que inicialmente me intrigava, em pouco tempo (logo nas primeiras páginas) revelou-se-me uma fonte de imenso prazer.

Lembro até hoje que o professor, sabendo de meu entusiasmo, espantou-se e, um tanto cético, indicou-me também a obra mestra de Aluísio: O cortiço. O livro me encantou ainda mais e me fez chegar ao O mulato,  primeiro romance do autor, além de me tornar, ainda aos quinze anos, um leitor voraz da prosa oitocentista: Eça de Queirós, Camilo Castelo Branco e outros.

Seria possível reduzir aquela oferta do professor à ideia de “obrigação”? Ou ainda: seria possível classificar o meu esforço (porque obviamente houve esforço) como uma tarefa sem papel significativo, um exercício  mecânico ou burocrático, com a finalidade apenas de agradar os mais velhos?

Não, não, nada disso: costumo pensar que com aquelas leituras começaram, em grande parte, a minha descoberta do mundo.

Esta foi a edição do “Casa de pensão” que li no ginásio, por indicação do professor de Português Dario Macri

Foi justamente uma lista de livros obrigatórios – para uma seleção de mestrado – que me levou à leitura de Terra sonâmbula.

Iniciei a leitura a contragosto, cheio de receios, mas, passadas poucas páginas, vi-me estupefato, impressionado com o texto.

Eis-me então boquiaberto diante de uma obra de Mia Couto, grato ao acaso e à obrigatoriedade da tal lista, que generosamente encaminhou-me para um livro fundamental, quando meu interesse ou meu instinto poderia facilmente derivar para uma outra escolha.

Conclusão: mesmo o leitor mais velho, “escolado”, deve desconfiar de sua capacidade de escolher e de seu poder de resistir ao que é imposto, ao que não é determinado pelas suas listas prévias.

Mais recentemente, como o leitor do Prefácio pode ter notado, vem crescendo minha vontade de conhecer a produção em língua portuguesa europeia e africana, sobretudo a do século XX e XXI. Entre as várias listas de autores que eu mesmo produzi, entretanto, o nome do moçambicano Mia Couto jamais esteve presente. É um autor importante, conhecido, muito citado, publicado por uma grande editora brasileira, a Companhia das Letras. Mas a experiência que tive, há dez anos, com Estórias abensonhadas, foi, desde a leitura do título, um imenso dissabor. Esse pequeno contato foi suficiente para eu passar a detestar o autor e comentar, com quem encontrasse, tratar-se de literatura de baixo quilate, imitação barata de Guimarães Rosa.

Hoje me pergunto se o que experimentei foi dissabor ou puro preconceito.

A mistura como bandeira poética

Com a prosa poética no centro de tudo, Terra sonâmbula fundamenta-se  no cruzamento de registros: o culto e o popular, o escrito e o falado, o mítico e o real.

Esse cruzamento – que se dá no plano imagético, sintático e vocabular -parece provar que esses diferentes registros não se opõem, mas sim se complementam. E essa complementaridade, parece-me, é a principal responsável pela eficácia do discurso.

A desqualificação que se baseia na semelhança da obra de Mia Couto com a de Guimarães Rosa é bastante problemática.

Primeiramente porque parte do pressuposto de que Guimarães Rosa está sozinho em algumas de suas principais escolhas estilísticas, pressuposto que desconsidera o complexo desenvolvimento de nosso Modernismo, que tem a mistura poética de registros como importante bandeira e encontra na prosa do  Mário de Andrade de Macunaíma e Contos de Belazarte um de seus pontos decisivos. Se considerado com cuidado, Mário de Andrade – sobretudo no caso de Belazarte – pode ser visto como manancial decisivo da carpintaria do mestre mineiro. Isso diminui o valor da obra de Guimarães?

A bandeira poética da mistura de registros é um dos aspectos decisivos também na formação da literatura luso-africana, na qual há, além da diversidade social do idioma português, a coexistência dele com vários outros idiomas. Se o modernismo brasileiro figurou como modelo para muitos autores luso-africanos, é mais certo dizer que ele fortaleceu ou intensificou uma tendência do que afirmar que a inaugurou. Suas principais contribuições funcionaram mais como confirmações solidárias do que já havia como busca, interesse latente ou mesmo expressão consolidada na África lusófona. É um caso em que, mais que influência, devemos falar em confluência.

Alargando nosso horizonte referencial, podemos ver que a tentativa de entender e incluir o homem pobre e analfabeto no corpo do discurso literário foi (e é ainda) uma das grandes missões da literatura lusófona. É natural que, nesse conjunto, semelhanças estilísticas apareçam: entre autores como Mário de Andrade, Guimarães Rosa, João Cabral de Mello Neto, José Luandino Vieira,  José Craveirinha, Manuel Ferreira ou Mia Couto.

Acalanto da Mãe-África

Claro, dizer que houve “imitação” é diferente de dizer que houve “imitação barata”, porque a segunda afirmação envolve um aspecto valorativo. Vamos a ele então. Obviamente é o mais difícil, e obviamente não conseguirei esgotá-lo.

Depois de aderir às malhas da sintaxe e sentir-me envolvido em sua musicalidade (sem ainda deixar de estranhar e até me incomodar eventualmente com algumas combinações lexicais, confesso), ocorreu-me que o livro, ao abordar a realidade de miséria e violência extremas, corria o risco de ser um exercício de embelezamento do mal, um discurso compensatório e oportunista, e que se encaixaria portanto na expressão feliz que a crítica de cinema Ivana Bentes usou para caracterizar parte da produção cinematográfica brasileira dos últimos anos:  “cosmética da fome” (1).

Eu me perguntava então se Terra sonâmbula se Terra sonâmbula seria mais um exemplo de tal categoria estética. A questão foi, ao longo da leitura, minha principal inquietação: seria o livro de Mia Couto um  exercício de estetização da precariedade, da dor, da violência e da miséria alheia, isto é, seria um movimento de aceitação, relativização da barbárie, transformado-a em música aprazível?

Terminado o livro, minha resposta agora é: NÃO.

Não se pode dizer que Terra sonâmbula atenua a tragicidade da realidade que representa. Se a leitura do mundo é marcado pela poesia, essa poesia está longe de significar embelezamento enganador, está longe de esconder o aspecto trágico dos acontecimentos e de ludibriar o leitor.

Sofrimento, dureza, violência, precariedade, falta. O incômodo permanece ao longo de toda a narrativa. A “estetização da barbárie” – no sentido de relativização ou diluição das tensões – não caracteriza absolutamente a obra de Mia Couto.

Publicação da editora  portuguesa Caminho, 2004

Minha redescoberta do mundo  

O livro se divide em dois núcleos narrativos.

Um deles é a história do garoto Muidinga e do velho Tuahir. Os dois  perambulam por um cenário de devastação, marcado pelo cheiro da morte, até que se abrigam na carcaça de um ônibus, onde dividem espaço com corpos carbonizados. O menino, temeroso, reclama; o velho, que dissimula preocupação e carinho com gestos e palavras ríspidas, exige silêncio, paciência resignação.

Um sinal de alento aparece entre esses dois:  é a leitura que Muidinga faz de uns cadernos que encontraram numa mala abandonada. São as notas de Kindzu, e constituem o segundo núcleo da história.

Os cadernos de Kindzu se intercalam com os capítulos da peregrinação sem rumo de Muidinga e Tuahir.

A narrativa do menino e do velho corresponde a um presente estático, com sua paisagem imóvel, a atmosfera de morte, indecisão,  desesperança. Já o núcleo de Kindzu é marcado por ações e por procuras mais específicas, ou seja, é um núcleo mais dinâmico. Essa variação de movimentos dá ritmo à composição de Mia Couto.

O núcleo de Tuahir e Muidinga é marcado mais pelas consequências da guerra, como se fosse o resultado de um processo. No núcleo de Kindzu o que vemos é o próprio processo se desenvolvendo: a guerra, suas abominações,  disputas, as idas e vindas de uma população que já não sabe mais dormir e portanto sonhar. Uma população sonâmbula.

Kindzu é ainda capaz de sonhar e, com seus escritos, compartilhar seus sonhos:

“Ponho o sonho, em sua selvagem desordem: eu estava descendo um vale molhado de tanta luz, cheio de manhã. Aquela parecia a primeira madrugada do mundo. A luz se espantava de sua própria estreia, experimentando sua grandeza ao iluminar as mais pequenas coisas. As cores, de tanto serem novas, se cambiavam incessantemente. Foi então que vi avançar um enorme grupo de pessoas, pobres, embrulhadas em cascas e fiapos. Eram centenas de centenas. Foram-me enchendo o sono À frente seguia o feiticeiro da minha aldeia. Envergava uma sarapilheira encardida, cujos farrapos poeiravam pelo chão. O adivinho olhou a terra como se dele dependesse o destino do universo. Pesava nos seus olhos a gravíssima decisão de criar um outro dia.”

Os escritos de Kindzu representam, para o velho e o menino, novos horizontes. Somente a palavra, em Terra sonâmbula, tem o poder de reordenar a existência, de ressignificá-la, acordar seus sentidos. É ela a única resposta ao sonambulismo da terra.

A certa altura, Tuahir comenta:

“O que faz andar a estrada? É o sonho. Enquanto a gente sonhar a estrada permanecerá viva. É para isso que servem os caminhos, para nos fazerem parentes do futuro.”

O escritor moçambicano Mia Couto nasceu em Beira, em 1955

E foi o próprio Mia Couto quem disse:

“Para se libertar da prisão que é a realidade fechada com a chave da razão, é preciso desvalorizar suas paredes”, (palestra de Mia Couto na UFMG, em julho de 2007)

Misturando mito e história, narrativa e poesia, Mia Couto oferece com Terra sonâmbula um monumento de inusitada beleza. Uma beleza que oferece à barbárie o único elemento que a literatura possui: a palavra. Essa arma indestrutível.

(1) Com esse termo Ivana Bentes procurou contrastar criticamente parte da produção atual do cinema brasileiro com a “estética da fome”, defendida por Gláuber Rocha nos anos 60.

Carta de Graciliano para Antonio Candido, em 1945

Rio de Janeiro, 12 de novembro de 1945

Antonio Candido:

Só agora, lido o último artigo da série que V. me dedicou, posso mandar-lhe estas linhas e conversar um pouco. Muito obrigado. Mas não lhe escrevo apenas por causa dos agradecimentos: o meu desejo é trazer-lhe uma informação ajustável ao que V. assevera num dos seus rodapés.

Arriscar-me-ia a fazer restrições ao primeiro e ao segundo, se isto não fosse considerado falsa modéstia. E impertinência: com as vivas atenções dispensadas a meu romance de estreia, foram apontados vários defeitos, o que de certo modo atenua a parcialidade otimista.

Onde as nossas opiniões coincidem é no julgamento de Angústia. Sempre achei absurdos os elogios concedidos a este livro, e alguns, verdadeiros disparates, me exasperaram, pois nunca tive semelhança com Dostoiévski nem com outros gigantes. O que eu sou é uma espécie de Fabiano, e seria Fabiano completo se a seca houvesse destruído minha gente, como V. muito bem reconhece.

Por que é que Angústia saiu ruim? Diversas pessoas procuraram razões, que não me satisfizeram. Olívio Montenegro usou frases ingênuas e pedantes, misturando ética e estética. João Gaspar Simões afirmou que o americano é incapaz de introspecção – e com esta premissa arrasou-me. Veja só. Nada há mais falso que um silogismo. Álvaro Lins veio com aquele negócio de tempo metafísico. Mas isso diz pouco, não é verdade? Se eu constituísse uma exceção à regra de João Gaspar Simões e contentasse Olívio Montenegro e Álvaro Lins,Angústia não deixaria de ser um mau livro, apesar de haver nele páginas legíveis.

Por que é mau? Devemos afastar a ideia de o terem prejudicado as reminiscências pessoais, que não prejudicaram Infância, como V. afirma. Pego-me a esta razão, velha e clara: Angústia é um livro mal escrito. Foi isto o que o desgraçou. Ao reeditá-lo, fiz uma leitura atenta e percebi os defeitos horríveis: muita repetição desnecessária, um divagar maluco em torno de coisinhas bestas, desequilíbrio, excessiva gordura enfim, as partes corruptíveis tão bem examinadas no seu último artigo. É preciso dizermos isto e até exagerarmos as falhas: de outro modo o nosso trabalho seria inútil.

E aqui vem a informação a que me referi. Forjei o livro em tempo de perturbações, mudanças, encrencas de todo o gênero, abandonando-o com ódio, retomando-o sem entusiasmo. Matei Julião Tavares em vinte e sete dias; o último capítulo, um delírio enorme, foi arranjado numa noite. Naturalmente seria indispensável recompor tudo, suprimir excrescências, cortar pelo menos a quarta parte da narrativa. A cadeia impediu-me essa operação. A 3 de março de 1936 dei o manuscrito à datilógrafa e no mesmo dia fui preso. Nos longos meses de viagens obrigatórias supus que a polícia me houvesse abafado esse material perigoso. Isto não aconteceu – e o romance foi publicado em agosto. Achava-me então na sala da capela. Não se conferiu a cópia com o original. Imagine. E a revisão preencheu as lacunas metendo horrores na história. Só muito mais tarde os vi. Um assunto bom sacrificado, foi o que me pareceu.

Esta explicação tem apenas o fim de exibir-lhe o prazer que me causou o seu juízo. Quando um modernista retardatário e pouco exigente me vem seringar amabilidades a Angústia, digo sempre: – “Nada impede que seja um livro pessimamente escrito. Seria preciso fazê-lo de novo.”

Permita-me que apenas toque nos seus estudos relativos a São BernardoVidas secas Infância. Ser-me-ia difícil estender-me sobre eles. O que faço é agradecer. Por muito vaidoso que sejamos, às vezes certas opiniões nos amarram: diante delas ficamos atrapalhados e sem jeito.

Adeus, Antonio Candido. Abraços do admirador e amigo

Graciliano Ramos

Literatura sem bijuterias

Ainda no assunto leituras de férias, acabei de ler ontem O velho Graça, de Dênis de Morais, uma biografia sobre Graciliano Ramos, escritor que venho há anos relendo e estudando, principalmente seu romance Angústia.

Notícias sobre o livro de Morais. É uma obra tocante e admirável, fruto de pesquisa cuidadosíssima e de intensa sensibilidade de leitor, como se espera de uma boa biografia:  sensível sem ser irresponsável e fundamentada sem ser fria. Morais consegue isso.

Abordando o homem e o artista Graciliano Ramos, o autor acaba construindo um panorama da primeira metade do século XX, no Brasil e no mundo.

Curioso como a vida de Graciliano pode ser dividida em duas partes, uma anterior à sua prisão,  quando era um autor praticamente desconhecido e vivia no Nordeste, a maior parte do tempo em cidades alagoanas como Palmeira dos Índios e Maceió e outra posterior à prisão, quando se instalou no Rio de Janeiro e ali começou uma existência mais cosmopolita, com ampla interlocução entre a intelectualidade da época, chegando mesmo, já no fim da vida, a conhecer a União Soviética, a França e a Argentina.

Na primeira fase Graciliano é o humanista apartidário, apenas simpático a ideias progressistas, concentrado em construir seus “bichos subterrâneos”, suas grandes obras de ficção em primeira pessoa: Caetés, São Bernardo e Angústia. Na segunda fase, é o simpatizante e o militante do PCB, autor de um romance em terceira pessoa e duas obras-primas da literatura memorialística: Infância e Memórias do cárcere, que mantêm a intensidade narrativa das obras de ficção, apenas tomando como protagonista a sua própria pessoa. Na primeira fase, Graciliano parece mais ocupado em conquistar seu espaço imaginativo, cultivando monstros pessoais, e depois, distanciado daquelas criaturas matutas, já contextualizado no ambiente urbano e fervilhante do Rio dos anos 30, 40 e 50, parece olhar para o sertão de modo mais distanciado, mesmo em Vidas secas, que ele narra em terceira pessoa, e o gênero das memórias atende perfeitamente à necessidade de recordar e reconstituir o que já não é palpável.

Tocante conhecer os arroubos afetuosos do homem à primeira vista carrancudo. Delicioso confirmar que sempre zelou pela dignidade e pela coerência e que nunca traiu suas convicções mais profundas. Triste vê-lo definhando, ao fim do livro, pobre como um pedinte, mas sempre ao lado da encantadora esposa Heloísa e de alguns de seus filhos, como o escritor Ricardo Ramos, que para mim é outro destaque na obra de Morais.

Fechei o livro ainda mais intrigado com a figura desse homem, meu escritor brasileiro predileto. E hoje, novamente remoendo esse espaço seco e arredio que é o universo de Graciliano Ramos, encontrei este vídeo e decidi postar aqui para que outros conheçam parte da vida desse autor decisivo na literatura e na história do Brasil.

Dados sobre o vídeo encontrados no excelente site Mídias na Educação – NCE – Vídeos (link neste blog):

Graciliano Ramos – literatura sem bijouterias
Documentário da série Mestres da Literatura da TV Escola. Via Domínio Público.

Sinopse
A trajetória de Graciliano Ramos, de prefeito de sua cidade natal até tornar-se escritor. As atribulações pessoais e políticas de Graciliano. Sua obra e seu estilo literário refinado, marcada pelo romance regionalista. O programa mostra uma análise sobre seu principal livro, Vidas Secas.

Ficha Técnica
Direção e roteiro: Hilton Lacerda
Produção: Malu Viana Batista
Realização: Pólo Imagem e TV PUC para a TV ESCOLA/MEC, 2001
Duração: 20’02”

O capote (1843)

“Todos nós descendemos de O capote“, declarou Dostoiévski, no mais antológico elogio à grandeza de Nicolau Gógol (1809-1852), escritor nascido na Ucrânia, mas filiado à literatura russa e um dos pilares de sua expressão moderna.

O capote é a tragicômica história de Akáki Akákievitch, um conselheiro titular, ou seja, alguém que tem a mísera função de copiar documentos, uma insignificante peça na rígida hierarquia da Rússia czarista. Akáki é um homem solitário, não tem mulher, parentes ou amigos.  É visto como ridículo pelos colegas da repartição. Sua opressão, como sua solidão e seu aspecto ridículo, causam pena.

Capa de Igor Grabar para edição russa

A existência de Akáki resume-se em copiar, de modo impecável, os documentos oficiais que lhes encaminham na repartição. Segundo o tradutor e crítico Paulo Bezerra (1), com sua função de copista Akáki sublima seus desejos, os mais secretos e profundos, inclusive o erótico:

“Corre a pena por sobre o papel em branco com o mesmo carinho e a mesma habilidade com que o homem apaixonado usa a magia da mão carinhosa para compor páginas inumeráveis de poesia sobre o corpo da mulher amada.”

Akáki é um homem rígido, aferrado à rotina e amante dela, estranho a tudo o que signifique novidade. A virada no enredo se dá quando, certa vez, esse homenzinho encontra-se diante da necessidade de adquirir um novo capote, pois o seu, já surrado pelo uso, não dava mais conta de protegê-lo do terrível frio de São Petersburgo. 

A  ideia em si da aquisição de algo novo (palavra que explode em sua mente como um pecado irresistível) desmonta inteiramente o quadro de referências de Akáki. O capote, que funcionava como uma insígnia, uma marca de distinção social, ameaça a retidão subserviente do copista: deslumbrado com uma milagrosa significação social, o copiador dos caracteres não consegue mais reproduzir de modo tão fiel (e servil) o mundo daqueles que o dominam. Sonhando mais alto, ele começa a errar – nos dois sentidos da palavra: comete incorreções gráficas, devaneia de felicidade.

Akáki é cômico. Segundo o narrador, suas faces têm tonalidades hemorroidais. Seu nome é um cacófato, além de ser uma cópia do nome do pai (seu papel é o de cópia e copiador, ou seja, o de uma nulidade). A ridicularização que Akáki sofre na repartição nos arranca, indisfarçavelmente, um risinho maldoso. Rimos de uma miséria involuntária. “O reverso trágico do riso” – como o consagrado crítico russo Vladimir Propp descreveu o talento de Gógol – é  a maior beleza de O capote, na qual tudo o que é engraçado é triste e tudo o que é triste é risível.

Ao indicar Gógol como pai de uma linhagem, Dostoiévski provavelmente pensasse especificamente na tradição literária russa. Mas os leitores da grande literatura moderna podem certamente reconhecer Akáki Akákevitch como uma matriz de personagens famosos como Gregor Samsa, de Kafka, Mersault, de  Camus ou  ainda Fabiano, de Graciliano Ramos. Akáki é o primeiro grande modelo dessa família de “humilhados e ofendidos”, para usar expressão de Dostoiévski.

Por estas e muitas outras razões, recomendo veementemente a leitura de O capote, uma das narrativas mais decisivas de minha vida.

Recomendo veementemente também um passeio virtual pelas pinturas de Igor Grabar e pelas animações (há várias no YouTube) de Yuriy Norshteyn.

Mais sobre Gógol e outros russos em outros posts.

Cena de “O capote”, animação de Yuriy Norshteyn

(1) Todos os comentários a respeito de O capote aqui partem da edição O capote e outras novelas (Civilização Brasileira, 1990), com tradução, notas e um riquíssimo prefácio  de Paulo Bezerra. Bezerra é certamente o mais importante tradutor de literatura russa no Brasil dos últimos vinte anos. Destaca-se principalmente pelas excelentes traduções da obra madura de Dostoiévski pela Editora 34: Crime e castigo, O idiota, Os irmãos Karamázov. A Editora 34, por sua vez, merece elogios repetidos pela ousadia e coragem com que vem lançando e relançando nos últimos anos, em sua Coleção Leste, autores fundamentais da literatura russa como Púchkin, Gógol, Dostoiévski, Tolstói e Tchekov, todas enriquecidas com notas, prefácios ou posfácios importantíssimos e contando invariavelmente com traduções diretas do russo. Trata-se do primeiro projeto editorial verdadeiramente sistemático de aproximação do público brasileiro da literatura russa.

Cor local (5)

O cortiço, de Aluísio Azevedo (1890)

Aluísio Azevedo (São Luís do Maranhão, 1857 – Buenos Aires, 1913) era um escritor meticuloso. Seus escritos testemunham um raro tino para a observação, uma habilidade extraordinária de enxergar a realidade e conseguir reproduzi-la de forma viva e atraente. Essa habilidade  deve-se ao fato de o autor, ainda moço, ter trabalhado como caricaturista para jornais e revistas. Tem a ver também com o empenho com que procurava dominar o material de suas histórias: sabe-se que tinha o hábito de frequentar os ambientes que descrevia em seus livros (1), como se fosse um jornalista, ou, melhor ainda, como se fosse um antropólogo. Tinha como alvo de suas histórias naturalistas o trabalhador pobre, o mulato, o imigrante, o pequeno-burguês e para observá-los empunhava à frente de seus olhos uma eficiente lupa.

Aluísio Azevedo na época em que escreveu "O cortiço"

A obra desse mestre do retrato divide-se em dois grupos bem distintos: as histórias que ele escrevia para sobreviver, de cunho romântico, e as histórias que ele escrevia para denunciar os horrores que flagrava em seu meio – o Brasil do final do século XIX -, de caráter naturalista.

Entre o segundo grupo de histórias, estão obras como O mulato, Casa de pensão e O cortiço, que consagraram o escritor como um dos mais importantes de nossa literatura. Esses três livros representam, em nossa tradição literária,  o que há de mais precioso na formação de uma consciência crítica acerca da realidade nacional. E são modelares no que diz respeito à fatura de romances: início, desenvolvimento – com suas muitas digressões – e fim, sempre com o tal elemento surpresa, cuidadosamente amarrados – causa com consequência alinhavadas impecavelmente, o narrador atado firme ao leme de sua narrativa, evitando que ela mude sua rota ou que perca seu rumo. Uma consciência vigilante e inteligente que coordena atentamente as múltiplas peças de sua trama.

O cortiço, entre todas as obras de Azevedo, é a que tem trama mais vibrante e desenho mais expressivo de personagens. Elas não chegam a ser complexas e as transformações que ocorrem em seu comportamento obedecem de modo servil a fórmula da estética naturalista, cuja ordem é “o homem é produto do meio”. Mas dentro dessa simplicidade de traços (desses estereótipos, diriam alguns) essas personagens se movem vigorosamente:  Firmo, o mulato  “pachola” e boa-vida, desenho básico do malandro brasileiro; Rita Baiana, mulata folgazã e corajosa, fôrma das figuras femininas de Jorge Amado (Tieta e outras), independente e sobretudo sensual; o homem-rato João Romão, português explorador repugnante – essas e outras personagens aparecem como criaturas vivas e apaixonam o leitor.

Ao condenar as condições de vida dos pobres, em tom de denúncia social, o narrador não deixa de, ao mesmo tempo, emitir juízo de valor a respeito de suas ações. Quando rotula de bondoso o trabalhador português antes de ele abrasileirar-se e condena o Jerônimo já abrasileirado, além de cometer preconceito – ao associar brasilidade a imoralidade -, valoriza preceitos burgueses tais como produtividade, vida em família, casamento, etc. O Jerônimo “bom” era o homem que produzia exemplarmente, um trabalhador dedicado, quase um operário-padrão. O outro, o Jerônimo “vicioso”, prendia-se apenas aos prazeres, era um vagabundo beberrão. Fica para o leitor então, no mínimo, a pergunta: o correto seria Jerônimo submeter-se aos desígnios do sistema, isto é, da exploração da mão de obra barata? O explorado alienado, seria ele aceitável para o narrador? Não parece ser essa propriamente a defesa de Azevedo, mas a narrativa não faz qualquer movimento para prová-lo. Ao contrário, pelo que mostra a trama, Jerônimo passou a ser “mais um” entre outros pobres de costumes viciosos. Em contato com a podridão  moral do meio (Brasil), “misturando-se” a gente  como Rita Baiana (por quem se apaixona) e Firmo (a quem assassina), brasileiros, pobres e mulatos, gente apresentada como degradada, a retidão de Jerônimo se afrouxa e ao final desaparece. A mensagem que fica então, ainda que de modo indireto (e, muito provavelmente, involuntário) (2), é a de que o pobre que se desvia do caminho do trabalho, deixando-se levar pelos convites dos sentidos imposto pelo meio (Brasil), corrompe-se.

A grandeza de O cortiço garante-se, contudo, pela escolha do ambiente, pela preocupação em abordar a sério (3) – ainda que de modo estereotipado – a vida dos mais pobres, procurando, como Émile Zola (1840-1902), pai da escola naturalista,  “Pôr a nu as chagas daqueles que vivem mais abaixo.” Além disso, a já comentada capacidade de dar vida às personagens – o modo como Azevedo “desenha” suas criaturas –  garante para o leitor uma experiência agradável, ainda para o leitor contemporâneo, tão habituado (ou viciado?) à linguagem visual.

O Brasil da época de O cortiço é o país que se europeizava e proclamava a República. O mesmo país que, paradoxalmente, tão recentemente abolira a escravidão. A massa de ex-escravos, juntamente a brancos pobres, constituía o grupo de desempregados ou subempregados que atiçaria o medo das classes abastadas. Tal como ocorria nas cidades de Londres e Paris (4), a presença da população pobre na zona urbana do Rio de Janeiro era motivo de grande preocupação para as elites e autoridades cariocas. Além de enfeiarem a cidade, que procurava a todo custo exibir a forçada modernização do Brasil, as classes populares praticavam furtos, crimes e poderiam se insurgir a qualquer momento contra o poder estabelecido (tal como de fato aconteceu, por exemplo, em 1904, na chamada Revolta da Vacina). As classes populares representavam aquilo de pior que o Brasil possuía: sua estrutura social de extremos contrastes.

Foto de um cortiço no Rio de Janeiro do começo do século XX

Publicado em 1890, O cortiço é um excelente retrato não só de seu tempo, quando as construções em forma de cortiço (5) começam a tomar conta de centros urbanos brasileiros, como Rio de Janeiro e São Paulo. Mas é também uma descrição de todo o processo de urbanização do século XX, caracterizado pelas habitações precárias – como os tão conhecidos barracos das favelas. Os cortiços ainda existem em nossa sociedade: São Paulo, por exemplo, abriga em torno de 600 mil moradores de cortiços (6).

Interior de um cortiço da São Paulo atual

Em meu percurso como leitor, conheci relativamente cedo Aluísio Azevedo. O primeiro contato foi na escola, na sétima série (hoje oitavo ano), pela indicação do professor Dario Macri (por onde andará essa criatura tão importante em minha vida?). Ele indicou-nos Casa de pensão como leitura obrigatória e referiu-se a O cortiço. Li e reli os dois livros várias vezes durante a minha adolescência. Já adulto, li O mulato e descobri que o escritor maranhense foi decisivo para a formação de outro escritor nordestino: Graciliano Ramos (meu escritor favorito). Isso só serviu para me deixar ainda mais interessado pela obra de Azevedo.

(1) Há quem diga que esteve inclusive envolvido em episódio de violência com uma de suas personagens mais famosas, o capadócio Firmo, de quem aliás, segundo afirmam, Aluísio teria levado uma navalhada.

(2) O fato de ser ou não voluntário não significa rigorosamente nada para a discussão literária: a obra deve ser lida pelo que apresenta e não pelo que o autor possivelmente pretendeu apresentar. Alguns artistas, como o cineasta José Padilha, que esbravejou contra aqueles que, segundo ele,  não entenderam suas reais intenções em Tropa de Elite (2007), nem sempre levam em conta esse princípio, a meu ver fundamental.

(3) Em Mimesis (obra monumental e das mais importantes da teoria literária),  Erich Auerbach propõe uma história da literatura baseada em sua capacidade de representar a realidade a partir das tensões sociais. A obra dá destaque para o século XIX, visto como momento em que se obtém o auge desse processo: para Auerbach, esse auge tem a ver com o fato de que, somente a partir do século XIX, aparece regularmente uma abordagem séria do homem pobre, que só então tem uma presença sistemática como protagonista de tramas  literárias.

(4) Para se ter um contato mais profundo com a formação das modernas Paris e Londres, indico a rápida e agradabilíssima leitura de Londres e Paris no século XIX: o espetáculo da pobreza, de Maria Stella M. Bresciani (Brasiliense, 1982).

(5) De acordo com o Dicionário Houaiss, a palavra cortiço deriva de cortiça e significa “peça feita de cortiça ou de qualquer outra casca de árvore, para alojar colônias de abelhas; colmeia” e, por extensão, “casa que serve de habitação coletiva para a população pobre; casa de cômodos, cabeça de porco”. Cabeça de porco eu não conhecia, mas já ouvi, entre meus tios do interior, a expressão boca de porco, para descrever moradia ou estabelecimento comercial de baixa qualidade.

(6) Dado encontrado no site Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos:  http://www.gaspargarcia.org.br/coticos.asp

Autorretrato aos 56 anos, do Mestre Graça

Este post é dedicado a uma pérola da autobiografia brasileira; sobretudo para quem, como eu, é fascinado pela obra de Graciliano Ramos.

O velho Graça[1] usa aqui seu característico estilo – seco, direto e despojado – para falar de um assunto que se enquadra perfeitamente a esse estilo: sua própria pessoa.

Segue abaixo o texto, com algumas notas minhas destacando curiosidades:

Autorretrato aos 56 anos

Nasceu em 1892, em Quebrangulo, Alagoas.
Casado duas vezes, tem sete filhos.
Altura 1,75.
Sapato n.º 41.
Colarinho n.º 39.
Prefere não andar.
Não gosta de vizinhos.
Detesta rádio, telefone e campainhas.
Tem horror às pessoas que falam alto.
Usa óculos. Meio calvo.
Não tem preferência por nenhuma comida.
Não gosta de frutas nem de doces.
Indiferente à música.
Sua leitura predileta: a Bíblia[2].
Escreveu Caetés[3] com 34 anos de idade.
Não dá preferência a nenhum dos seus livros publicados.
Gosta de beber aguardente.[4]
É ateu[5]. Indiferente à Academia.
Odeia a burguesia[6]. Adora crianças.[7]
Romancistas brasileiros que mais lhe agradam: Manoel Antônio de Almeida, Machado de Assis, Jorge Amado, José Lins do Rego e Rachel de Queiroz.
Gosta de palavrões escritos e falados[8].
Deseja a morte do capitalismo.
Escreveu seus livros pela manhã.
Fuma cigarros Selma (três maços por dia).[9]
É inspetor de ensino, trabalha no “Correio do Manhã”.
Apesar de o acharem pessimista, discorda de tudo.[10]
Só tem cinco ternos de roupa, estragados.
Refaz seus romances várias vezes.
Esteve preso duas vezes.
É-Ihe indiferente estar preso ou solto[11].
Escreve a mão.
Seus maiores amigos: Capitão Lobo[12], Cubano[13], José Lins do Rego e José Olympio.
Tem poucas dívidas.
Quando prefeito de uma cidade do interior, soltava os presos para construírem estradas[14].
Espera morrer com 57 anos[15].


[1] Graça era como chamavam Graciliano Ramos alguns de seus amigos. Outra forma usada pelos íntimos era Mestre Graça ou ainda Velho Graça. Na biografia de Dênis de Moraes (O  Velho Graça, Editora José Oympio),  a qual estou lendo no momento, descobri que os familiares tratavam Graciliano pela forma abreviada Grace.

[2] Como muitos escritores e intelectuais, Graciliano tinha a Bíblia como uma obra literária, importante para a formação cultural do indivíduo.

[3] A história da publicação desse romance, o primeiro de Graciliano Ramos, merece comentários. Graciliano, quando prefeito de Palmeira dos Índios (de 1928 a 1930), envia para o governador de Alagoas o relatório de prestação de contas do município. Esse relatório, por suas qualidades literárias, acaba indo parar nas mãos do editor Augusto Schmidt, que procura Graciliano para saber se ele possui outros escritos que pudessem ser publicados. O que Graciliano tinha era exatamente o romance Caetés, e publicou-o.

[4] Em um dos momentos mais perturbadores de Memórias do cárcere, Graciliano, deprimido, sem comer e sem apetite, procura atenuar seu desespero bebendo uma garrafa de cachaça que consegue com dificuldade nos porões do Manaus, navio no qual foi transportado com mais algumas centenas de presos.

[5] Em Memórias do cárcere, Graciliano Ramos narra a situação insólita que viveu com um policial que não conseguia fazer seu registro de prisioneiro na Ilha Grande unicamente porque não havia nenhum campo na ficha a preencher onde coubesse o adjetivo ateu. O episódio é interessante por fazer-nos pensar na singularidade da posição de Graciliano Ramos, ateu numa época e num lugar onde isso era mais que uma aberração: era praticamente um crime. A despeito de estarmos em pleno século XXI, a sociedade brasileira tem dado mostras (como podemos ver nas disputas eleitorais deste ano) de atitudes regressivas semelhantes às que Graciliano Ramos enfrentou ao longo de sua vida – somos uma sociedade ainda marcada, em muitas instâncias, pela presença de um moralismo e de um dogmatismo cristãos que oprimem moral e politicamente quem se coloca de modo contrário aos princípios defendidos pelas igrejas e pelos seus fiéis.

[6] A situação da “conversão” de Graciliano Ramos ao comunismo é curiosa. Quase dez anos depois de ser preso por suas ideias progressistas (mas os motivos formais de sua prisão nunca foram declarados pelas autoridades; Graciliano não teve sequer um processo judicial), o escritor encontrou, numa viagem a Belo Horizonte, por acaso, ninguém menos que o líder comunista Luís Carlos Prestes. Essa conversa foi decisiva para a filiação de Graciliano ao Partido Comunista Brasileiro.

[7] Vemos isso pela foto, em que Graciliano Ramos aparece paparicado pelas netinhas Sandra e Vânia.

[8] Nada que possa pôr Graciliano no patamar de um Jorge Amado, escritor mais “boca-suja” de nossa literatura. Mas a presença do palavrão e mesmo de termos considerados chulos se faz marcante na obra de Graciliano, aliás um dos traços que confirmam – ao contrário do que muitas vezes se diz –  sua comunhão com alguns pressupostos modernistas.

[9] Não por acaso, o velho Graça morreu de câncer pulmonar.

[10] Eis uma frase exótica, perfeita para o epitáfio de um niilista.

[11] Essa “indiferença” chega a soar ofensiva: Como pode um homem ser tão desapegado, tão forte? Esse é o tipo de pergunta que eu me fiz insistentemente ao longo da leitura das Memórias do cárcere.

[12] Capitão Lobo: oficial comandante do quartel em que Graciliano esteve preso, no Recife, em 1936.

[13] Cubano: ladrão que o escritor conheceu na prisão.

[14] Graciliano Ramos foi prefeito de Palmeira dos Índios de 1928 a 1930. Seu governo, pela seriedade, incomodava os privilégios dos chefões locais.

[15] Ao contrário dessa previsão, que revela de modo até espantoso seu completo desapego, Graciliano morreu aos sessenta e um anos, em 1953. Outra previsão em que se saiu mal foi em relação ao desenvolvimento do futebol no Brasil: ao saber que o esporte se popularizava pelo País, Graciliano exclamou algo como “Essa bobagem inglesa nunca vai pegar aqui!” Errou feio, meu caro, tornamo-nos simplesmente o País do Futebol, somos pentacampeões! Mas numa previsão Graça foi perfeito: depois de ler o volume de contos Sagarana, ele previu que Guimarães Rosa escreveria um livro maior, de mais fôlego, um imenso romance, imenso no tamanho e na importância, o mais importante do século XX, livro que não poderia ser lido por ele, que na ocasião já estaria morto. Batata: Grande sertão: veredas, que parece realmente um desdobramento dos contos de Sagarana, foi publicado em 1956, ou seja, três anos após a morte de Graciliano, e é considerado por muitos o maior romance brasileiro do século XX. Outra curiosidade é que Ricardo Ramos, filho de Graça, também escritor, morreu, em 1992, no mesmo dia do mês e da semana que o pai.  Este post ficou meio agourento? Escreverei num próximo sobre outros aspectos de Graciliano Ramos, meu autor favorito.

Adeus, Columbus

Acabei de terminar a leitura do primeiro livro de Philip Roth: Adeus, Columbus. Como disse o escritor Saul Bellow, “é um livro de estreia, não de princiante”.

O livro é de 1959, mas foi publicado no Brasil apenas em 2006,  pela Companhia das Letras, em formato pocket, com a tradução de Paulo Henriques Britto.

Trata-se de uma antologia composta pela novela que dá nome ao livro – Adeus, Columbus – e  mais cinco contos: A conversão dos judeus, O defensor da fé, Epstein, Não se julga um homem pela canção que ele canta e Eli, o fanático.

Capa de uma edição francesa da obra de Roth, autor traduzido em vários países

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A obra bem poderia ter como subtítulo  “aspectos da cultura judaica nos Estados Unidos”, porque o que Roth faz basicamente é observar, por ângulos diferentes e com níveis variados de humor cáustico, os modos de vida dos judeus americanos: seus dogmas, seus hábitos – Roth talvez dissesse “suas manias” ou ainda “suas paranoias”. Quem conhece a crítica bem humorada de Woody Allen aos costumes judaicos passeará pelo livro de Roth com alguma familiaridade.

Comentários breves sobre os cinco contos:

A conversão dos judeus é uma sátira aos dogmas religiosos a partir do confronto entre um adolescente e um rabino, o que terá consequências absurdas. Em O defensor da fé, Roth ironiza os usos oportunistas da causa judaica, contando a história de militares, em plena guerra, que se aproveitam do fato de serem judeus para salvar a própria pele. Epstein é a história de um casal judeu de meia idade que começa a viver uma crise terrível depois que a mulher descobre que seu marido contraiu uma DST e que portanto, obviamente, a traiu. O resultado é absurdo. Em Não se julga um homem pela canção que ele canta vemos as consequências da ligação entre um “rapaz de família” e seus colegas de escola bad boys. Eli, o fanático é uma reflexão profunda a respeito da fé e dos dogmas a partir dos grandes contrastes marcados entre tradição religiosa e civilização moderna.

São todas narrativas intrigantes e instigantes, apresentando situações absurdas com consequências tragicômicas.

Mas para mim o ponto alto mesmo do livro é a novela Adeus, Columbus, o primeiro texto, mais longo que todos e muito mais vibrante.

A história é a do primeiro amor de Niel Klugman, contada por ele mesmo. A história que ele viveu com Brenda Patimkin.

Klugman é um bibliotecário pobretão, Brenda é de família riquíssima. Ambos são judeus.

Eis como é descrito o primeiro encontro, logo nas primeiras linhas:

A primeira vez que vi Brenda ela me pediu para segurar seus ócvlos. Então foi até a ponta do trampolim e, apertando os olhos, mirou a piscina; se estivesse vazia, Brenda não perceberia o fato, míope que era. Deu um belo mergulho e um instante depois voltava nadando para a beira da piscina, mantendo a cabeça, de cabelos avermelhados cortados curtos, erguida à frente, como se fosse uma rosa de caule longo. Rapidamente chegou à borda e veio ter comigo. “Obrigada”, disse, os olhos cheios d’água, mas não da piscina. Estendeu a mão para pegar os óculos, porém só os pôs nos lugar depois que me deu as costas e se afastou. Fiquei vendo-a ir embora. Suas mãos de repente apareceram atrás dela. Segurou a bainha do maiô com o polegar e o indicador e enfiou no devido lugar o pouco de carne que estava aparecendo. Meu sangue ferveu.

Brenda já aparece aí com algumas de suas marcas mais decisivas:  é desembaraçada (“despachada” é mais preciso), dissimulada, provocadora, sensualmente pueril, e pode com isso facilmente enlouquecer os sentidos do pobre Klugman.

Mas a sedução é também a da narrativa em si mesma sobre o leitor, que se sente imediatamente envolvido pelo texto. Não somente pelo que ele traz de mensagem sensual ou até sexual (vale lembrar que nesse texto não temos um Roth licencioso, como o de O complexo de Portnoy), mas pelo seu convite imperioso ao universo denso e delicado, sutil e sinuoso da inesquecível primeira experiência amorosa. Em tudo o que ela tem de hipnótico. Em tudo o que tem de caloroso. Para repovoar esse mundo de cheiros, cores, temperaturas, sons e ecos tão difusos só mesmo uma memória privilegiada – uma memória sinestésica, como a apresentada pelo narrador de Roth.

O mais fenomenal é que Roth visita esse universo delicado do primeiro amor sem se render ao sentimentalismo fácil, apresentando – já em seu primeiro livro – um verdadeiro exercício de fuga da pieguice, com sua voz despojada – mesmo quando abandona provisoriamente o humor e toca o puramente lírico. Isso acontece porque Adeus, Columbus é uma revisitação das histórias de primeiro amor, uma espécie de paródia, não exatamente no sentido de imitação cômica, mas no sentido de retomada, de homenagem, de releitura. Como se nos propusesse:  Vamos ver de fato como é esse negócio que chamam de primeiro amor.

A história de Niel não é exatamente a de Brenda. Brenda vive numa mansão de proporções infinitas (o leitor, se aventurando por ela, parece se perder em seus múltiplos cômodos). Niel é pobre, mora de favor na casa de uma tia. Essa tia, criatura neurótica, parece figurar na galeria das personagens de Allen, com seus rompantes patéticos dirigidos a Niel: “Uma criança na Europa dava pra fazer três refeições completas só com o que você deixa no prato.”

O mundo de Niel, que comparado ao dos Patimkins é um submundo, tem contato muito mais direto com mundos ainda mais subterrâneos – o dos negros pobres dos States, exemplificado na personagem graciosa do negrinho que adora as pinturas de Gauguin. Essa figurinha simpática a certa altura surge na biblioteca e, com seu carregado sotaque sulista, pergunta a Niel:

– Ô, onde é a seção de artipraste?

Niel num primeiro momento não entende – assim como o leitor – que o garoto, presença bastante improvável naquele ambiente letrado, procurava pela seção de artes plásticas.

Niel o conduz até ela e – novamente assim como o leitor – supreende-se com a enorme empolgação que o menino demonstra em relação às pinturas de Gauguin e com a assiduidade com que passa a frequentar aquela seção da biblioteca para admirar os habitantes do Taiti, espécie de oásis pictórico que o menino define como um lugar onde “ninguém vive gritando e berrando”, como provavelmente devia ser o seu mundo. E por um minuto consideramos o milagre da arte. Não na sacralidade do nome de Gauguin, não na burocracia biblioteconômica, não nos bancos da escola: mas na experiência viva e pura das formas e das cores como sonho e pulsão, como possibilidade de ressignificação da vida.

As pinturas do francês Paul Gauguin (1848-1903) encontram o olhar de um expectador muito improvável na narrativa de Roth

A vida do jovem Niel divide-se então entre dois mundos opostos: o da biblioteca frequentada pelo negrinho, com toda sua simplicidade, e o da mansão dos Patimkin, com toda sua opulência.

Mas e o amor, o primeiro – ELE -, que destino terá para Niel? Que destino terá para Brenda?, jovem despachada, desinibida, para quem o mundo parece estar disposto sempre como uma porta escancarada, à espera de seu triunfo.

Quem pensa, contudo, que Brenda é somente uma riquinha desmiolada se engana. Ela é espirituosa e é também enigmática – ela é, para o coração de um jovem, irresistível. E aí está também o trunfo de Roth: sua criatura feminina é apaixonante. Com ela, Niel (e o leitor, sempre seguindo os passos dele) tem a sensação de flutuar pelos espaços ou ser arrastado por uma corrente de água (a água, a piscina – presenças insistentes no texto), sempre numa aura fantasiosa, como se tudo fosse um sono bom, um sonho.

Essa sensação de sentidos dormentes, de atmosfera onírica me fez associar a novela de Roth ao filme de Benjamin Braddock A primeira noite de um homem, em que se apresenta um convite parecido para o dilatar de nossa percepção, fazendo-a captar os detalhes mínimos mas decisivos na primeira experiência amorosa – essa experiência que é mais resgatada pela memória difusa que pela lógica ordenadora da razão. Memórias que são borrões, não linhas.

“A primeira noite de um homem” (1967), de Benjamin Braddock, com o estreante Dustin Hoffman: o enredo é bem diferente da novela de Roth, mas a atmosfera onírica e inocente do amor na tenra idade parece ser a mesma

Como Capitu para Bentinho (Dom Casmurro, Machado de Assis) ou como Madalena para Paulo Honório (São Bernardo, Graciliano Ramos), Brenda será para Niel, eternamente, um mistério. Porque a imagem fulgurante do primeiro amor não é somente inesquecível – ela é também, cruelmente, incompreensível:

Como conhecê-la? eu me perguntava, pois enquanto ela dormia fiquei pensando que tudo o que eu sabia a seu respeito era o que se podia ver numa fotografia.

Entender o primeiro amor (seria essa a busca do Philip Roth maduro?) não é entender o outro, mas a si mesmo.

E por isso Niel conta sua história. Por isso conta a sua Bentinho. Por isso faz o mesmo Paulo Honório.

E não é o que fazemos, todos nós, dia após dia?

Cor local (4)

Os Corumbas, de Amando Fontes (1933)


Surgido num contexto de debate acalorado sobre a relação entre literatura e realidade nacional, o romance de Amando Fontes teve aprovação unânime ao ser publicado.

Os Corumbas conseguiu agradar autores de posições radicais, como o comunista Jorge Amado e o conservador Octavio de Faria, numa época em que os julgamentos estéticos eram associados muitas vezes de modo direto aos posicionamentos ideológicos.

A narrativa conta a história da família Corumbas, que, em busca de melhores condições de vida, abandona o pequeno povoado de Ribeira, no interior de Sergipe, e parte para Aracaju, onde enfrenta toda sorte de desgraças, de ordem material e moral. Como é constante nos processos migratórios, o centro urbano atrai vidas famintas para seu centro sedutor e as humilha, assinalando nelas seu desígnio letal: a perda da tradição (a cidade é a ruína das tradições) – lógica que pode ser vista também em obras como Angústia, talvez o romance mais intenso de Graciliano Ramos (embora o autor, cuja descomunal autoexigência era notória, considerasse-o um livro “cheio de gorduras”) e aparece ainda em outras obras-primas, como o famoso filme do italiano Lucchino Visconti Rocco e seus irmãos.

A primeira menção que encontrei a Os Corumbas foi em Uma história do romance de 30[1], de Luís Bueno, em que o autor descreve a intensa euforia que foi a recepção do romance pelos seus contemporâneos, que o consagraram imediatamente.

Fiquei bastante intrigado com os comentários do crítico. Eu, desde muito aficcionado pela Geração de 30, nunca tinha sequer ouvido falar no nome de Amando Fontes!

Então tratei de ir atrás de Os Corumbas e encontrei um exemplar da 25ª edição da José Olympio, de 2003. Devorei o livro em poucos dias e a satisfação foi completa. Tinha encontrado uma das boas fatias do romance nordestino de 30, um livro sem floreios e torneios, sem massa de linguiça – um livro só com o essencial.

O romance de Fontes se divide em 3 partes. A primeira se passa em Ribeira, e conta a história do agricultor Geraldo Corumba, que se casa com Josefa. A terrível seca de 1905 leva os produtores de cana à bancarrota e o casal, pais de quatro moças e um rapaz, decide migrar.

A segunda parte – onde se desenvolvem os elementos centrais da narrativa – mostra a família situada há um tempo já em Aracaju. Geraldo e as duas moças mais velhas, Rosenda e Albertina, são operários da fábrica de tecidos. O filho, Pedro, trabalha como mecânico numa oficina. As esperanças dos Corumbas estão depositadas todas na escolarização das duas filhas mais novas, que deverão tornar-se professoras e assim promover a mobilidade social da família. Josefa é uma dona de casa dedicada. A labuta diária é uma batalha extenuante, que desafia constantemente o senso de justiça e a honestidade dos pobres, pondo à prova, ou melhor, pondo em xeque seus valores centrais[2].

Geraldo e Josefa, que representam os velhos valores sertanejos, valores fixos, veem pouco a pouco seus princípios abalados diante de um mundo de valores fluidos, entorpecido pela necessidade de sobrevivência, que atropela a moral e qualquer tipo de escrúpulo: é o mundo prático, amoral – o mundo moderno –, que engole seus sonhos.

As ações em Os Corumbas seguem uma lógica convincente, como se as vidas que o livro apresenta não pudessem responder ao destino que as empuxa de modo diferente do que mostra o narrador. Esse efeito de verossimilhança é reforçado por uma outra qualidade que Mário de Andrade apontou no romance: “o dom da dialogação”[3].

Outro grande nome a defender Os Corumbas foi o poeta Manuel Bandeira, que caracterizou Fontes como “escritor despretensioso, indiferente às qualidades elegantes de expressão e só atento ao que é essencial ao romance, ao movimento do romance, às suas exigências de construção e de verossimilhança psicológica.”[4]

O meio social em Os Corumbas é espaço de opressão, injustiça, iniquidade. Sua cor local é cinza, triste, desalentadora. Ler esse livro me deu a sensação de conhecer uma peça fundamental da literatura brasileira, uma peça que se ajusta perfeitamente às intenções do romance de 30 mas que possui um brilho particular.

Curioso pensar que o livro, tão aclamado em sua época por figuras de relevo na vida intelectual do País, hoje está praticamente esquecido pela academia e consequentemente pelos livros didáticos e as salas de aula…  E a que se deve tal esquecimento?


[1] Edusp / Unicamp, 2006. Trata-se da mais importante publicação sobre o romance de 30 nos últimos anos.

 

[2] Vale lembrar que essa problemática da necessidade x honestidade aparece de modo antológico no maior clássico do cinema neorrealista italiano: Os ladrões de bicicleta, de Vittorio de Sica.

[3] A citação aparece na orelha de minha edição de Os Corumbas.

[4] A citação está presente no livro de Luís Bueno, na página 194.