Cor local (7)

Bernardo Guimarães, protocolar, popular & marginal

Além de literato, Bernardo Joaquim da Silva Guimarães (1825-1884) foi juiz, jornalista, crítico literário e professor. Era um homem modesto, tendo recusado várias vezes o título de barão, oferecido a ele por ninguém menos que o próprio Imperador Dom Pedro II, seu mais eminente admirador.

Bernardo Guimarães escreveu romances, poemas, contos e crônicas. Mas foi A escrava Isaura, de 1875, quem lhe deu de fato notabilidade e o transformou numa espécie de escritor protocolar do século XIX, símbolo de uma literatura que podemos chamar standard para seu tempo, paradigmática do Romantismo e mesmo da ficção brasileira, de tal modo que, mais de um século depois de sua publicação, em 1976, A escrava Isaura é adaptada por Gilberto Braga para telenovela da Rede Globo e, extravasando portanto o âmbito literário, vira uma ficção de multidões – multidões não apenas brasileiras, lembremos, multidões mundiais, até mesmo de países como China, que teve  um bilhão de espectadores e que publicou uma tiragem do livro de mais ou menos 300 mil exemplares. Cerca de 150 países assistiram à versão global do romance de Guimarães, o que representou, para muita gente, o primeiro contato com imagens televisivas do Brasil. Isso nos obriga a concluir que muitos estrangeiros tiveram, como primeira imagem do Brasil, nossa sociedade escravocrata do século XIX, não a do Brasil dos anos 70, época da telenovela. Sendo assim, se considerarmos a escravidão negra como solo básico da nação brasileira, sua condição de ser, sua constituição mais básica – como já apontaram tantas vezes nossos historiadores e cientistas sociais –, é possível pensar que aqueles espectadores estrangeiros de A escrava Isaura conheceram o Brasil já pelo seu elemento fundante – para usarmos a expressão de Sérgio Buarque de Hollanda: conheceram “As raízes do Brasil”. Qual terá sido sua reação? O que pensaram sobre nós?[1] Questões profundamente instigantes para se pensar a identidade nacional.

Rubens de Falco e Lucélia Santos contracenam na adaptação da Globo

Essa versão de A escrava Isaura foi reprisada cinco vezes no Brasil, a primeira entre 1976 a 1977 e a última em 1990, como parte das comemorações da Rede Globo pelos seus 25 anos de existência. A Rede Record, depois de imbroglio judicial com a Globo, relançou a telenovela em 2004, obtendo altos índices de audiência e grande aceitação inclusive do público português. É bom lembrar que antes dessas duas adaptações televisivas, A escrava Isaura já havia sido adaptada várias vezes para o cinema, sem grande sucesso de bilheteria, o que não quer dizer muita coisa num país de pouca tradição cinéfila.

Não vi nenhuma dessas adaptações, li apenas o livro de Bernardo Guimarães e é bom lembrar que ele não é exatamente a expressão de inconformismo abolicionista, pois sua Isaura é destacada entre os outros servos por possuir qualidades particulares, uma “escrava menos escrava” que as outras.

Como nos lembra o grande crítico Alfredo Bosi, “O nosso romancista estava mais ocupado em contar as perseguições que a cobiça de um senhor movia à bela Isaura que em reconstruir as misérias do regime servil. E, apesar de algumas palavras sinceras contra as distinções de cor (cap. XV), toda a beleza da escrava é posta no seu não parece negra, mas nívea donzela, como vem descrita desde o primeiro capítulo:

A tez é como o marfim do teclado, alva que não deslumbra, embaçada por uma nuança delicada, que não sabereis dizer se é leve palidez ou cor-de-rosa desmaiada. (…) Na fronte calma e lisa como mármore polido, a luz do ocaso esbatia um róseo e suave reflexo; di-la-íeis misteriosa lâmpada de alabastro guardando no seio diáfano o fogo celeste da inspiração.

Mas, ainda conforme Alfredo Bosi: “Seria néscio falar em ‘preconceito’ como atitude etnicamente responsável. Pelo contrário, em Rosaura, a Enjeitada, obra da maturidade, Bernardo chega a dizer: ‘Em nossa terra é uma sandice querer a gente gloriar-se de ser descendente de ilustres avós; é como dizia um velho tio meu: no Brasil ninguém pode gabar-se de que entre seus avós não haja quem não tenha puxado flecha ou puxado marimba’. O que explica a beleza branca ‘branca’ de Isaura é a permanência de padrões estéticos europeus. E mais uma razão para marcar o caráter híbrido dessa novelística sertaneja e semipopular de que Bernardo foi o primeiro representante de mérito.”[2]

Terão as adaptações – filmes ou telenovelas – transformado o drama amoroso de Bernardo Guimarães em libelo antiescravista ou foi mantida, apesar da distância temporal e das consequentes e enormes alterações que a temática da escravidão recebeu, a abordagem de Isaura como exceção à regra, segundo a eurocêntrica convenção romântica, esperável numa escrita protocolar como a de Bernardo Guimarães, mas condenável em nossos dias? Peço a opinião do leitor que conheça alguma dessas adaptações.

As obras mais lidas de Bernardo Guimarães são A escrava Isaura e O seminarista, este também adaptado para o cinema, em 1979, e apontado por Antonio Candido como a melhor obra do autor[3]. Nela, Guimarães investiga as tensões entre o amor e o celibato clerical, tema abordado de modo mais cru e contundente no famosíssimo O crime do padre Amaro, de Eça de Queirós, e que também foi base para algumas narrativas de Machado de Assis, por exemplo os consagrados O caso da vara e Dom Casmurro. Possivelmente Bernardo Guimarães tenha sido entre nós o primeiro ou pelo o primeiro importante autor a abordar essa problemática entre desejo e dogma religioso.

Cópia em VHS do filme "O seminarista" (1977), de Geraldo Santos Pereira

Candido destaca a qualidade de Guimarães como contador de histórias: “boa prosa de roça, cadenciada pelo fumo de rolo que vai  caindo no côncavo da mão ou pela marcha das bestas de viagem, sem outro ritmo além do que lhes imprime a disposição de narrar sadiamente, com simplicidade, o fruto de uma pitoresca experiência humana e artística.”[4] Se existe algo de interessante nesses livros de argumentos ingênuos e em geral terrivelmente inverossímeis, livros de análises psicológicas pobres e de verborragia irritante, Candido parece ter sintetizado perfeitamente o que pode ser atraente neles: eu chamaria de convite para o conforto, para o tom caseiro e casual, aconchegante como uma visita à casa dos avós.

O Bernardo Guimarães moço curtiu a vida boêmia da estudantada paulistana de 1840-50, viveu as folias e a aura inspiradora que a minúscula, fria e vazia São Paulo daquele tempo incutia nas naturezas afeitas à introspecção.

São Paulo, conhecidana época  como Burgo Estudantil, afora o núcleo formado em torno da Faculdade São Francisco, com sua rotina intelectual e literária, era, nas palavras de Álvares de Azevedo “Um bocejar infinito”.

E era com Álvares de Azevedo e com Aureliano Lessa que Bernardo Guimarães dividia suas noitadas boêmias. Esses três, inseparáveis, referidos como O Triunvirato, projetaram escrever um livro a três, mas não passou de projeto. O melhor da poesia dessa geração talvez seja mesmo A lira dos vinte anos, com seus suspiros profundos e alguma boa ironia.

Mas há outra coisa, impublicável na época e que talvez tenha interesse para o leitor de hoje: uma poesia nonsense e boca-suja, estranha, bem estranha para sua época, recebendo de alguns o nome de pré-surrealismo, produção de um outro Bernardo Guimarães – não o imortal e protocolar autor de tramas novelescas, mas o poeta jovem, cômico e desarmado com seus bestialógicos. Para intelectuais como Haroldo de Campos, essa verve cômica da poesia de Bernardo Guimarães é a melhor parte de sua obra.

Veja abaixo a primeira parte de A orgia dos duendes, poema que faz parte desse flanco singular da criação de Guimarães:

A orgia dos duendes

I

Meia-noite soou na floresta
No relógio de sino de pau;
E a velhinha, rainha da festa,
Se assentou sobre o grande jirau.

Lobisome apanhava os gravetos
E a fogueira no chão acendia,
Revirando os compridos espetos,
Para a ceia da grande folia.

Junto dele um vermelho diabo
Que saíra do antro das focas,
Pendurado num pau pelo rabo,
No borralho torrava pipocas.

Taturana, uma bruxa amarela,
Resmungando com ar carrancudo,
Se ocupava em frigir na panela
Um menino com tripas e tudo.

Jetirana com todo o sossego
A caldeira da sopa adubava
Com o sangue de um velho morcego,
que ali mesmo co’as unhas sangrava.

Mamangava frigia nas banhas
Que tirou do cachaço de um frade
Adubado com pernas de aranhas,
Fresco lombo de um frei dom abade.

Ventou sul sobiou na cumbuca,
Galo-preto na cinza espojou;
Por três vezes zumbiu a mutuca,
No cupim o macuco piou.

E a rainha co’as mão ressequidas
O sinal por três vezes foi dando,
A coorte das almas perdidas
Desta sorte ao batuque chamando:

“Vinde, ó filhas do oco do pau,
Lagartixas do rabo vermelho,
Vinde, vinde tocar marimbau,
Que hoje é festa de grande aparelho.

Raparigas do monte das cobras,
Que fazeis lá no fundo da brenha?
Do sepulcro trazei-me as abobras,
E do inferno os meus feixes de lenha.

Ide já procurar-me a bandurra
Que me deu minha tia Marselha,
E que aos ventos da noite sussura,
Pendurada no arco-da-velha.

Onde estás, que inda aqui não te vejo,
Esqueleto gamenho e gentil?
Eu quisera acordar-te c’um beijo
Lá no teu tenebroso covil.

Galo-preto da torre da morte,
Que te aninhas em leito de brasas,
Vem agora esquecer tua sorte,
Vem-me em torno arrastar tuas asas.

Sapo-inchado, que moras na cova
Onde a mão do defunto enterrei,
Tu não sabes que hoje é lua nova,
Que é o dia das danças da lei?

Tu também, ó gentil Crocodilo,
Não deplores o suco das uvas;
Vem beber excelente restilo
Que eu do pranto extraí das viúvas.

Lobisome, que fazes, meu bem
Que não vens ao sagrado batuque?
Como tratas com tanto desdém,
Quem a c’roa te deu de grão-duque?”


[1] A esse respeito, mas especificamente em relação à cultura russa, é imperdível a leitura de Relações literárias e culturais entre Rússia e Brasil, de Leonid A. Shur (Editora Elos), em que o autor analisa os contatos entre os dois países durante os séculos XVIII e XIX.

[2] BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. Editora Cultrix, p.139.

[3] CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. Editora Itatiaia, p. 216.

[4] IDEM, p. 212.

Cor local (5)

O cortiço, de Aluísio Azevedo (1890)

Aluísio Azevedo (São Luís do Maranhão, 1857 – Buenos Aires, 1913) era um escritor meticuloso. Seus escritos testemunham um raro tino para a observação, uma habilidade extraordinária de enxergar a realidade e conseguir reproduzi-la de forma viva e atraente. Essa habilidade  deve-se ao fato de o autor, ainda moço, ter trabalhado como caricaturista para jornais e revistas. Tem a ver também com o empenho com que procurava dominar o material de suas histórias: sabe-se que tinha o hábito de frequentar os ambientes que descrevia em seus livros (1), como se fosse um jornalista, ou, melhor ainda, como se fosse um antropólogo. Tinha como alvo de suas histórias naturalistas o trabalhador pobre, o mulato, o imigrante, o pequeno-burguês e para observá-los empunhava à frente de seus olhos uma eficiente lupa.

Aluísio Azevedo na época em que escreveu "O cortiço"

A obra desse mestre do retrato divide-se em dois grupos bem distintos: as histórias que ele escrevia para sobreviver, de cunho romântico, e as histórias que ele escrevia para denunciar os horrores que flagrava em seu meio – o Brasil do final do século XIX -, de caráter naturalista.

Entre o segundo grupo de histórias, estão obras como O mulato, Casa de pensão e O cortiço, que consagraram o escritor como um dos mais importantes de nossa literatura. Esses três livros representam, em nossa tradição literária,  o que há de mais precioso na formação de uma consciência crítica acerca da realidade nacional. E são modelares no que diz respeito à fatura de romances: início, desenvolvimento – com suas muitas digressões – e fim, sempre com o tal elemento surpresa, cuidadosamente amarrados – causa com consequência alinhavadas impecavelmente, o narrador atado firme ao leme de sua narrativa, evitando que ela mude sua rota ou que perca seu rumo. Uma consciência vigilante e inteligente que coordena atentamente as múltiplas peças de sua trama.

O cortiço, entre todas as obras de Azevedo, é a que tem trama mais vibrante e desenho mais expressivo de personagens. Elas não chegam a ser complexas e as transformações que ocorrem em seu comportamento obedecem de modo servil a fórmula da estética naturalista, cuja ordem é “o homem é produto do meio”. Mas dentro dessa simplicidade de traços (desses estereótipos, diriam alguns) essas personagens se movem vigorosamente:  Firmo, o mulato  “pachola” e boa-vida, desenho básico do malandro brasileiro; Rita Baiana, mulata folgazã e corajosa, fôrma das figuras femininas de Jorge Amado (Tieta e outras), independente e sobretudo sensual; o homem-rato João Romão, português explorador repugnante – essas e outras personagens aparecem como criaturas vivas e apaixonam o leitor.

Ao condenar as condições de vida dos pobres, em tom de denúncia social, o narrador não deixa de, ao mesmo tempo, emitir juízo de valor a respeito de suas ações. Quando rotula de bondoso o trabalhador português antes de ele abrasileirar-se e condena o Jerônimo já abrasileirado, além de cometer preconceito – ao associar brasilidade a imoralidade -, valoriza preceitos burgueses tais como produtividade, vida em família, casamento, etc. O Jerônimo “bom” era o homem que produzia exemplarmente, um trabalhador dedicado, quase um operário-padrão. O outro, o Jerônimo “vicioso”, prendia-se apenas aos prazeres, era um vagabundo beberrão. Fica para o leitor então, no mínimo, a pergunta: o correto seria Jerônimo submeter-se aos desígnios do sistema, isto é, da exploração da mão de obra barata? O explorado alienado, seria ele aceitável para o narrador? Não parece ser essa propriamente a defesa de Azevedo, mas a narrativa não faz qualquer movimento para prová-lo. Ao contrário, pelo que mostra a trama, Jerônimo passou a ser “mais um” entre outros pobres de costumes viciosos. Em contato com a podridão  moral do meio (Brasil), “misturando-se” a gente  como Rita Baiana (por quem se apaixona) e Firmo (a quem assassina), brasileiros, pobres e mulatos, gente apresentada como degradada, a retidão de Jerônimo se afrouxa e ao final desaparece. A mensagem que fica então, ainda que de modo indireto (e, muito provavelmente, involuntário) (2), é a de que o pobre que se desvia do caminho do trabalho, deixando-se levar pelos convites dos sentidos imposto pelo meio (Brasil), corrompe-se.

A grandeza de O cortiço garante-se, contudo, pela escolha do ambiente, pela preocupação em abordar a sério (3) – ainda que de modo estereotipado – a vida dos mais pobres, procurando, como Émile Zola (1840-1902), pai da escola naturalista,  “Pôr a nu as chagas daqueles que vivem mais abaixo.” Além disso, a já comentada capacidade de dar vida às personagens – o modo como Azevedo “desenha” suas criaturas –  garante para o leitor uma experiência agradável, ainda para o leitor contemporâneo, tão habituado (ou viciado?) à linguagem visual.

O Brasil da época de O cortiço é o país que se europeizava e proclamava a República. O mesmo país que, paradoxalmente, tão recentemente abolira a escravidão. A massa de ex-escravos, juntamente a brancos pobres, constituía o grupo de desempregados ou subempregados que atiçaria o medo das classes abastadas. Tal como ocorria nas cidades de Londres e Paris (4), a presença da população pobre na zona urbana do Rio de Janeiro era motivo de grande preocupação para as elites e autoridades cariocas. Além de enfeiarem a cidade, que procurava a todo custo exibir a forçada modernização do Brasil, as classes populares praticavam furtos, crimes e poderiam se insurgir a qualquer momento contra o poder estabelecido (tal como de fato aconteceu, por exemplo, em 1904, na chamada Revolta da Vacina). As classes populares representavam aquilo de pior que o Brasil possuía: sua estrutura social de extremos contrastes.

Foto de um cortiço no Rio de Janeiro do começo do século XX

Publicado em 1890, O cortiço é um excelente retrato não só de seu tempo, quando as construções em forma de cortiço (5) começam a tomar conta de centros urbanos brasileiros, como Rio de Janeiro e São Paulo. Mas é também uma descrição de todo o processo de urbanização do século XX, caracterizado pelas habitações precárias – como os tão conhecidos barracos das favelas. Os cortiços ainda existem em nossa sociedade: São Paulo, por exemplo, abriga em torno de 600 mil moradores de cortiços (6).

Interior de um cortiço da São Paulo atual

Em meu percurso como leitor, conheci relativamente cedo Aluísio Azevedo. O primeiro contato foi na escola, na sétima série (hoje oitavo ano), pela indicação do professor Dario Macri (por onde andará essa criatura tão importante em minha vida?). Ele indicou-nos Casa de pensão como leitura obrigatória e referiu-se a O cortiço. Li e reli os dois livros várias vezes durante a minha adolescência. Já adulto, li O mulato e descobri que o escritor maranhense foi decisivo para a formação de outro escritor nordestino: Graciliano Ramos (meu escritor favorito). Isso só serviu para me deixar ainda mais interessado pela obra de Azevedo.

(1) Há quem diga que esteve inclusive envolvido em episódio de violência com uma de suas personagens mais famosas, o capadócio Firmo, de quem aliás, segundo afirmam, Aluísio teria levado uma navalhada.

(2) O fato de ser ou não voluntário não significa rigorosamente nada para a discussão literária: a obra deve ser lida pelo que apresenta e não pelo que o autor possivelmente pretendeu apresentar. Alguns artistas, como o cineasta José Padilha, que esbravejou contra aqueles que, segundo ele,  não entenderam suas reais intenções em Tropa de Elite (2007), nem sempre levam em conta esse princípio, a meu ver fundamental.

(3) Em Mimesis (obra monumental e das mais importantes da teoria literária),  Erich Auerbach propõe uma história da literatura baseada em sua capacidade de representar a realidade a partir das tensões sociais. A obra dá destaque para o século XIX, visto como momento em que se obtém o auge desse processo: para Auerbach, esse auge tem a ver com o fato de que, somente a partir do século XIX, aparece regularmente uma abordagem séria do homem pobre, que só então tem uma presença sistemática como protagonista de tramas  literárias.

(4) Para se ter um contato mais profundo com a formação das modernas Paris e Londres, indico a rápida e agradabilíssima leitura de Londres e Paris no século XIX: o espetáculo da pobreza, de Maria Stella M. Bresciani (Brasiliense, 1982).

(5) De acordo com o Dicionário Houaiss, a palavra cortiço deriva de cortiça e significa “peça feita de cortiça ou de qualquer outra casca de árvore, para alojar colônias de abelhas; colmeia” e, por extensão, “casa que serve de habitação coletiva para a população pobre; casa de cômodos, cabeça de porco”. Cabeça de porco eu não conhecia, mas já ouvi, entre meus tios do interior, a expressão boca de porco, para descrever moradia ou estabelecimento comercial de baixa qualidade.

(6) Dado encontrado no site Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos:  http://www.gaspargarcia.org.br/coticos.asp

População invisível

Não parece, mas a cidade de São Paulo possui uma série de monumentos em homenagem a poetas e escritores consagrados.

Na Praça Dom José Gaspar, onde fica a biblioteca Mário de Andrade, encontram-se, de uma vez só, seis deles: monumentos a Mário de Andrade, Cruz e Sousa e a outros quatro nomes retumbantes: Dante Alighieri, Luís de Camões, Miguel de Cervantes e Johann Goethe.

"Camões", de José Crucé. Peça de bronze

No Largo São Francisco, palco das primeiras agitações poéticas de São Paulo, encontra-se uma herma a uma das figuras centrais do Romantismo brasileiro, nosso primeiro poeta maldito: (Manuel Antônio) Álvares de Azevedo, ou, como era conhecido pelos seus condiscípulos da Faculdade de Direito: Maneco.

Vale a pena lembrar que  São Paulo nessa época, 1850, não passava de uma povoação pobre, com um número de habitantes inferior ao que tinham por exemplo Belém e Cuiabá. Nas palavras do próprio Maneco de Azevedo, São Paulo àquela época era “um bocejar infinito”.

"Herma de Álvares de Azevedo", de Amadeo Zani. Peça de bronze

Apenas alguns quarteirões do Largo São Francisco, deparamo-nos com a imagem daquele que pode ser considerado o primeiro homem das letras do Brasil: o padre jesuíta José de Anchieta. Esse homem, em 1554, participou da fundação do Colégio São Paulo, o embrião de nossa cidade; seu monumento não por acaso localiza-se no marco zero da capital: a Praça da Sé.

Já no Largo do Arouche, pode ser vistos outros monumentos: ao poeta modernista Guilherme de Almeida, ao escritor Visconde de Taunay,  autor de Inocência, a Vicente de Carvalho, poeta nascido em Santos e a Luís Gama, o verdadeiro Poeta dos Escravos. A história de Luís Gama mereceria um texto à parte: filho de mãe africana da nação Nagô, ex-escrava, Gama viveu ele mesmo a experiência do cativeiro quando foi, aos dez anos de idade, vendido, ilegalmente, pelo próprio pai, um fidalgo português falido. É uma das personalidades mais incríveis da nossa história, além de um importante autor de poesia social.

"Luís Gama", de Yolando Mallozzi. Peça de bronze

Não muito longe do centro, no bairro da Vila Mariana, encontram-se mais três significativas homenagens: a Cora Coralina, poetisa e escritora goiana, na praça que tem seu nome; ao célebre poeta parnasiano Olavo Bilac, na Avenida Sargento Mário Kozel e, na Avenida Sagres [1], ao gigante português Fernando Pessoa, um dos maiores nomes da literatura moderna.

Esses monumentos, como muitos outros, em São Paulo e em outras cidades, passam despercebidos, como se não existissem, o que é uma ironia do destino, afinal o que se pretende com um monumento é justamente perpetuar a memória de um evento ou de uma personalidade. Não é bem o que acontece.

E você, já viu alguma dessas celebridades por aí?


[1] Maiores informações sobre as obras, como autores e material de que são feitas, podem ser encontradas no site Monumentos de São Paulo (www.monumentos.art.br), uma espécie de mapa dos monumentos da cidade. Apesar de não ser rico em datações, o site é uma boa fonte de pesquisa.