A dualidade humana, por Michelle Krotoszynski

 

Tenho a honra de publicar, aqui no Prefácio, as ricas impressões de Michelle Krotoszynski sobre um clássico da literatura moderna.

A dualidade humana – Análise sobre o livro Demian, de Hermann Hesse

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Demian é uma autobiografia narrada pelo personagem Emil Sinclair, jovem de família tradicional, cristã e de classe alta que, ao cruzar com um enigmático rapaz chamado Max Demian, começa a questionar “verdades” quase inatas e, para ele, até então indubitáveis, desde uma passagem da Bíblia até grandes questões existenciais. A variedade de símbolose o cuidado ao escolhê-los, m marca cativante do alemão Hemann Hesse, reaparecem nesse livro com força.

Sinclair, logo no primeiro capítulo, aos 10 anos de idade, descreve uma distinção entre os “dois mundos” em que vive: o mundo da “luz” – sua casa, família, estudos e religião (tudo o que é puro, amável, limpo, inocente, racional, pacífico e conhecido), onde certamente deveria permanecer para que sua vida fosse bela e ordenada – e o “mundo das trevas” – a rua e o desconhecido; “universo no qual más línguas prometiam perversões, homens embriagados batiam em suas esposas, grupos de moças saíam das fábricas ao anoitecer, vacas pariam e cavalos tombavam ao solo”; o mundo em que coisas monstruosas, atraentes, terríveis e enigmáticas aconteciam. Contudo, Sinclair percebe, a linha que segrega os dois universos é tênue e frágil.

Certo dia, voltando da escola para a casa, Demian apresenta a Sinclair uma interpretação totalmente diferente sobre a história de Caim e Abel, estudada nas aulas de religião, evidenciando outro culpado. Desse modo esclarece o bloqueado pensamento de que as coisas explicadas no colégio são verdades absolutas e não somente um ponto de vista, assim denotando a existência de um significado mais amplo sobre os conceitos apreendidos. Nesse momento é despertado em Sinclair um sentimento provocativo nunca antes experimentado que o levará a situações inusitadas.

O ingresso do protagonista no mundo “obscuro” se dá quando tenta se livrar da imagem de burguês obediente para chamar a atenção do travesso colega Kromer, dizendo que havia furtado maçãs do vizinho. Porém, o vizinho daria uma recompensa a quem delatasse o ladrão e Kromer, sabendo disso, cria um pesadelo na vida de Sinclair, chantageando-o. Demian, ao se deparar com tal situação, auxilia e protege Sinclair, orientando-o a não temer Kromer e sim o enfrentar. Uma grande lição que Demian ensina a Sinclair nessa passagem é a do dever de se livrar do medo a qualquer custo; só assim ele daria chance à evolução pessoal.

A substituição da contraposição entre o mal e o bem pela que existe entre o forte e o fraco (pastor e rebanho) persiste na história como metáfora que leva à busca pelo conhecimento por si mesmo como a substituição da moral do mundo luminoso pela ética pessoal. Nesse ponto, percebe-se claramente apologia às teorias nietzschianas e sua “filosofia do martelo” (H. Hesse era um grande estudioso de Nietzsche) como a transvaloração de todos os valores, e a apresentação do lado dionisíaco do ser de uma forma não demonizada e reprimida, como nos primeiros anos da vida de Sinclair. Demian poderia representar os livros de Nietsche e Sinclair um adolescente os lendo, tamanha a afinidade à obra dele. Demian poderia representar também um professor, algum outro filósofo, um autor, uma situação conflituosa vivida; qualquer questão ou sujeito que impulsione alguém a refletir sobre a moral.

Gostaria de ressaltar um símbolo muito importante apresentado nos últimos capítulos. Sinclair sonha com uma ave saindo do ovo, e quando acorda, pinta essa imagem com cores vivas. No dia seguinte em uma aula qualquer, Demian deixa um bilhete na mesa de Sinclair, que dizia: “A ave sai do ovo. O ovo é o mundo. Quem quiser nascer precisa destruir um mundo. A ave voa para Deus. E o deus se chama Abraxas”. Abraxas representa a dualidade do “bem” e do “mal” no mesmo ser; é o diabo e Deus na mesma divindade. Mas quem é Abraxas? É uma entidade encontrada em muitos manuscritos gnósticos antigos como nos Papiros Mágicos Gregos e no Evangelho Copta dos Egípcios. Essa entidade é também descrita e estudada pelo psicólogo suíço Jung (muito apreciado por Hesse), em 1916, num breve tratado chamado os Sete Sermões aos Mortos.

No final da narrativa pode-se dizer que Sinclair incorpora totalmente as ideias de Demian: “[…] Mas quando vez por outra encontro a chave e desço a mim mesmo, ali onde, no sombrio espelho, dormem as imagens do destino, basta-me inclinar sobre a negra superfície acerada para ver em mim a minha própria imagem, semelhante já em tudo a ele, a ele, ao meu amigo e meu guia.”

Com certeza um dos livros mais bonitos que já li, talvez meu preferido; é um desses livros que deve ser lido na juventude e relido ao longo da vida. Cada reflexão feita pelos personagens são questões filosóficas já questionadas por todos. Ou pelo menos deveriam ser.

 

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Quais são os países mais leitores do mundo?

reproduzido do site METAMORFOSE DIGITAL, de 04.03.2014

 

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Os benefícios de ler são múltiplos e comprovados.

Estimula a criatividade, enriquece o mapa referencial, reforça processos cognitivos, por exemplo, afinando a memória. Em um plano coletivo, uma sociedade que lê mais é uma sociedade menos vulnerável, mais inventiva e inclusive seu senso comum é menos medíocre. E neste sentido, e de forma paralela a uma luta cívica e a exigências como a transparência de prestação de contas de seus governos e a regulação de suas elites, acho que o melhor que uma população poderia fazer é tentar a leitura.

Quais são os países mais leitores do mundo?
Há algumas semanas a Market Research World publicou o Índice de Cultura Mundial, ranking que refere a relação de diversos países, ou melhor dito de sua população, com diferentes hábitos culturais, entre eles a leitura. E ao revisar este último quesito, os países que encabeçam o hábito de ler é verdadeiramente surpreendente. Suponho que, assim como eu, a maioria de nós pensaria que os países mais leitores do mundo seriam os escandinavos, Japão, talvez Alemanha, mas a verdade é que, ao menos de acordo com este relatório, em realidade é nos países asiáticos onde as pessoas se entregam mais a esta proveitosa prática.

O país que mais lê no mundo é a Índia e ocupa essa distinção desde 2005. Os indianos dedicam, em média, 10 horas e 42 minutos semanais para ler. Os seguintes três postos também são ocupados por países da Ásia, Tailândia, China e Filipinas, enquanto o quinto é, notavelmente, o Egito. Posteriormente vem a nação européia melhor localizada, República Tcheca, seguida da Rússia, Suécia empatada com a França, e depois Hungria empatada com a Arábia Saudita. Quanto a América Latina, o país mais leitor é a Venezuela, no 14º lugar, e depois vêm a Argentina (18º), México (25º) e Brasil (27º) com médias de leitura que rondam menos da metade de tempo que dedicam na Índia.

Chama a atenção que as duas economias com maior potencial, China e Índia, estejam acompanhando com educação seu crescimento explosivo na indústria, mercado e outros. Isto sugere que seu desenvolvimento não só responde ao fato de serem por muito as duas maiores populações do planeta, senão que também a uma verdadeira inteligência e estratégia. Por outro lado, não deixa de ser lamentável confirmar um indício a mais de que os latino-americanos, diferente dos asiáticos, estejamos ainda longe da maturidade necessária para, eventualmente, tomar o relevo de mãos da Europa e Estados Unidos, à cabeça do desenvolvimento econômico e cultural.

Enfim, talvez o fato de estar entre os países que mais tempo dedicam à leitura não assegure a sua população um melhor futuro de acordo às variáveis macroeconômicas ou de progresso, e nem sequer para os padrões de civismo ou felicidade, mas ao menos me parece que é um valioso indicador de maturidade, e sem dúvida, permite a construção de um panorama mais rico e interessante, algo que mais cedo ou mais tarde se materializará em melhores condições de vida.

Enquanto isso vamos ter a copa mais cara de todos os tempos nos estádios mais caros do mundo, algo que mais cedo ou mais tarde se materializará em uma quebradeira geral.

“Não é preciso queimar livros para destruir uma cultura. Basta fazer com que as pessoas deixem de lê-los!”
Ray Bradbury

Post novo, ainda que tardio

Caros leitores, o autor deste Prefácio pede desculpas sinceras pelo tempo de ausência.

Mãos à obra novamente, segue a reprodução de uma importante pesquisa sobre a formação de leitores no Brasil.

O texto foi publicado originalmente no site da Fapesp.

Eis o link:

http://agencia.fapesp.br/18789

Pesquisa expõe problemas na formação de leitores

21/03/2014

Por Elton Alisson*

Agência FAPESP – O Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE) possibilitou que as instituições de educação infantil públicas no país passassem a contar, nos últimos 17 anos, com um acervo de livros com quantidade e qualidade suficientes para a realização de atividades voltadas a contribuir para a formação de leitores.

As coleções de livros do programa, instituído pelo Ministério da Educação (MEC) em 1997, não contemplam, no entanto, as especificidades pedagógicas da primeira infância – de 0 a 3 anos. E os docentes e responsáveis pelas bibliotecas de creches e berçários públicos não estão preparados para desenvolver atividades de formação de leitores com as crianças nessa faixa etária.

As conclusões são da pesquisa “Literatura e primeira infância: dois municípios em cena e o PNBE (Programa Nacional Biblioteca da Escola) na formação de crianças leitoras”, realizada no Departamento de Didática da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Marília, e no Departamento de Educação da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Unesp de Presidente Prudente, com apoio da FAPESP, no âmbito de um acordo de cooperação com a Fundação Maria Cecília Souto Vidigal (FMCSV).

Alguns resultados do estudo foram apresentados no dia 13 de março durante o I Seminário de Pesquisas sobre Desenvolvimento Infantil, realizado na FAPESP.

“Constatamos que a quantidade e a qualidade das coleções de livros do PNBE são muito boas, mas estão mais voltadas para crianças maiores, a partir de 3 anos”, disse Cyntia Graziella Guizelim Simões Girotto, professora do curso de Pedagogia da Unesp de Marília e coordenadora do projeto, durante sua palestra no evento.

“Também há um despreparo dos professores e cuidadores e de toda a equipe das escolas para trabalhar com essas crianças pequenas não só em atividades relacionadas à formação de leitor, mas também para compreender as potencialidades das crianças”, afirmou Girotto.

Durante o projeto, os pesquisadores analisaram o acervo de obras literárias do PNBE voltados à educação infantil. Uma das principais constatações foi a de que as coleções, compostas por mais de 150 obras, não contemplam as especificidades das crianças abaixo de 3 anos em termos de projeto gráfico, editorial, estético e literário.

“Não defendemos que seja preciso estabelecer regras para a literatura infantil, mas há especificidades que não podem ser desconsideradas nos livros voltados à primeira infância”, afirmou.

“As crianças nessa fase de desenvolvimento não leem do mesmo modo que uma criança em fase de alfabetização, tampouco como um leitor maduro. Mas já ensaiam, pelo contato direto com o livro, o que denominamos de ‘ações embrionárias do ato de ler’, atribuindo sentidos às ações iniciais dos modos de ler”, disse Girotto à Agência FAPESP.

Práticas de leitura

Os pesquisadores também fizeram um mapeamento de como as crianças com até 3 anos têm acesso a livros nas instituições públicas de educação infantil com base em entrevistas com 520 professores, 60 coordenadores pedagógicos e 55 profissionais responsáveis pela biblioteca de 71 creches e berçários dos municípios de Marília e Presidente Prudente, no oeste paulista.

Foi constatado que cerca de 80% desse universo de instituições ainda não utiliza o acervo recebido do PNBE. Em algumas instituições, as coleções ficam em estantes da biblioteca, armários ou em caixas perdidas na instituição ou dividem espaço com produtos e materiais de limpeza.

“O pressuposto de que só a quantidade e a qualidade das obras são condições suficientes para o desenvolvimento de atividades de formação de leitores na educação infantil não é verdadeiro”, avaliou Girotto.

De acordo com a pesquisadora, uma das razões da subutilização dos livros da coleção do PNBE nas instituições avaliadas é o despreparo da equipe de docentes e responsáveis pelas bibliotecas para colocar em prática atividades voltadas à formação de leitor na primeira infância.

Apesar disso, professores, coordenadores pedagógicos e profissionais responsáveis pelas bibliotecas das instituições participantes do estudo destacaram, durante as entrevistas realizadas pelos pesquisadores, que consideram importante o processo de ofertar e estimular o contato das crianças com o livro. “Mas muitos acreditam que só contar histórias ou ler em voz alta para as crianças é o suficiente”, disse Girotto.

Segundo a pesquisadora, o mediador de leitura pode – e deve – ler e contar histórias para as crianças. Mas também é preciso que a criança seja colocada em contato direto com o livro para tateá-lo, explorá-lo e imitar os adultos e, dessa forma, iniciar sua formação como leitor.

Educação literária

A pesquisa deverá resultar em dois livros com previsão de lançamento no 18º Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino, que ocorrerá entre 11 e 14 de novembro em Fortaleza, no Ceará.

O primeiro livro, com o título provisório “Literatura e Primeira Infância I: da contação de histórias e da proferição”, discute a criança como ouvinte e a função do mediador.

No segundo livro, também com o título provisório “Literatura e educação infantil: tateios, experimentação e sentidos dos livros para/com os pequenos”, os pesquisadores pretendem discutir abordagens específicas do desenvolvimento infantil e as peculiaridades dos livros voltados à primeira infância, que devem valorizar a experimentação e ação direta da criança, ressaltou Girotto.

“Todo o trabalho de formação de leitor na primeira infância pode ficar a desejar se não existirem livros adequados e não for feita uma adequada mediação e apresentação das publicações para as crianças”, estimou a pesquisadora.

“As crianças precisam reconhecer e usar os livros tal como o adulto ou um leitor autônomo fazem, buscando compreender as informações em textos verbais ou imagéticos”, indicou.

Por meio do projeto, os pesquisadores pretendem estabelecer um programa de atividades de leitura com crianças com até 3 anos utilizando o acervo do PNBE e desenvolver uma proposta de formação de docentes.

Além disso, querem continuar os trabalhos nas instituições dos dois municípios com avaliações sobre o acesso aos livros, práticas de leitura literária nas unidades que utilizam o acervo do PNBE, sobre mediação dos professores e sobre os livros selecionados por eles.

“As instituições de ensino infantil têm a responsabilidade de propiciar às crianças o contato com obras literárias da melhor qualidade, respeitando suas especificidades de desenvolvimento e sem subestimar sua capacidade intelectual”, avaliou.

“Isso não significa antecipar a alfabetização, mas estabelecer diretrizes para a educação literária, desde a primeiríssima infância, sem apequenar os potenciais da criança”, afirmou.

O objetivo do seminário na FAPESP foi divulgar os resultados de dez projetos de pesquisa selecionados na primeira Chamada de Propostas do Acordo de Cooperação Científica e Tecnológica firmado entre as duas instituições em 2010 nas áreas de Saúde, Educação, Economia, Pedagogia, Psicologia e Assistência Social.

Também participaram do seminário os coordenadores dos 16 novos projetos aprovados na segunda seleção de propostas, concluída em 2013.

*Com Fernando Cunha.

 

“Coração em África”, de Francisco José Tenreiro

tenreiro prefacio
O poeta são-tomense foi fundamental para a afirmação da negritude na poesia africana de língua portuguesa.

Hoje, dia da Consciência Negra em várias cidades do Brasil, o Prefácio publica um dos mais expressivos textos da poesia engajada escrita em língua portuguesa. 

A toda a história de luta e de conquistas corajosas dos povos negros, contra o oportunismo e a atrocidade da escravidão que durou séculos, em repúdio a todas as formas de racismo desde os tempos imemoriais até os nossos dias, que sobrevivem no “humor” preguiçoso e enjaulado de nossa imprensa, na violência cotidiana e naturalizada da nossa polícia, na farsa de nossa “democracia racial”; contra toda consciência alienada e perversa que repete os ecos ritmados das muitas chibatas centenárias:  este canto doloroso e potente de Francisco José Tenreiro. 

CORAÇÃO EM ÁFRICA

Caminhos trilhados na Europa
de coração em África
Saudades longas de palmeiras vermelhas verdes amarelas
tons fortes da paleta cubista
que o Sol sensual pintou na paisagem;
saudade sentida de coração em África
ao atravessar estes campos de trigo sem bocas
das ruas sem alegrias com casas cariadas
pela metralha míope da Europa e da América
da Europa trilhada por mim Negro de coração em África.
De coração em África na simples leitura dominical
dos periódicos cantando na voz ainda escaldante da tinta
e com as dedadas de miséria dos ardinas das cities boulevards e baixas da Europa
trilhada por mim Negro e por ti ardina
cantando dizia eu em sua voz de letras as melancolias do orçamento que não equilibra
do Benfica venceu o Sporting ou não.
Ou antes ou talvez seja que desta vez vai haver guerra
para que nasçam flores roxas de paz
com fitas de veludo e caixões de pinho:
Oh as longas páginas do jornal do mundo
são folhas enegrecidas de macabro blue
com mourarias de facas e guernicas de toureiros.
Em três linhas (sentidas saudades de África) –
Mac Gee cidadão da América e da democracia
Mac Gee cidadão negro e da negritude
Mac Gee cidadão Negro da América e do Mundo Negro
Mac Gee fulminado pelo coração endurecido feito cadeira eléctrica
(do cadáver queimado de Mac Gee do seu coração em África e sempre vivo
floriram flores vermelhas flores vermelhas flores vermelhas
e também azuis e também verdes e também amarelas
na gama policroma da verdade do Negro
da inocência de Mac Gee) –
três linhas no jornal como um falso cartão de pêsames.
Caminhos trilhados na Europa
de coração em África.
De coração em África com o grito seiva bruta dos poemas de Guillen
de coração em África com a impetuosidade viril de I too am America
de coração em África com as árvores renascidas em todas estações nos belos
poemas de Diop
de coração em África nos rios antigos que o Negro conheceu e no mistério do
Chaka-Senghor
de coração em África contigo amigo Joaquim quando em versos incendiários
cantaste a África distante do Congo da minha saudade do Congo de coração em
África,
de coração em África ao meio dia do dia de coração em África
com o Sol sentado nas delicias do zénite
reduzindo a pontos as sombras dos Negros
amodorrando no próprio calor da reverberação os mosquitos da nocturna
picadela.
De coração em África em noites de vigília escutando o olho mágico do rádio
e a rouquidão sentimento das inarmonias de Armstrong.
De coração em África em todas as poesias gregárias ou escolares que zombam
e zumbem sob as folhas de couve da indiferença
mas que tem a beleza das rodas de crianças com papagaios garridos
e jogos de galinha branca vai até França
que cantam as volutas dos seios e das coxas das negras e mulatas
de olhos rubros como carvões verdes acesos.
De coração em África trilho estas ruas nevoentas da cidade
de África no coração e um ritmo de be bop be nos lábios
enquanto que à minha volta se sussurra olha o preto (que bom) olha
um negro (óptimo), olha um mulato (tanto faz)
olha um moreno (ridículo)
e procuro no horizonte cerrado da beira-mar
cheiro de maresias distantes e areias distantes
com silhuetas de coqueiros conversando baixinho a brisa da tarde.
De coração em África na mão deste Negro enrodilhado e sujo de beira-cais
vendendo cautelas com a incisão do caminho da cubata perdida na carapinha
alvinitente;
de coração em África com as mãos e os pés trambolhos disformes
e deformados como os quadros de Portinari dos estivadores do mar
e dos meninos ranhosos viciados pelas olheiras fundas das fomes de Pomar
vou cogitando na pretidão do mundo que ultrapassa a própria cor da pele
dos homens brancos amarelos negros ou às riscas
e o coração entristece a beira-mar da Europa
da Europa por mim trilhada de coração em África;
e chora fino na arritmia de um relojo cuja corda vai estalar
soluça a indignação que fez os homens escravos dos homens
mulheres escravas de homens crianças escravas de homens negros escravos dos homens
e também aqueles de que ninguém fala e eu Negro não esqueço
como os pueblos e os xavantes os esquimós os ainos eu sei lá
que são tantos e todos escravos entre si.
Chora coração meu estala coração meu enternece-te meu coração
de uma só vez (oh orgão feminino do homem)
de uma só vez para que possa pensar contigo em África
na esperança de que para o ano vem a monção torrencial
que alagará os campos ressequidos pela amargura da metralha
e adubados pela cal dos ossos de Taszlitzki
na esperança de que o Sol há-de prenhar as espigas de trigo para os meninos viciados
e levará milho às cabanas destelhadas do último rincão da Terra
distribuirá o pão o vinho e o azeite pelos aliseos;
na esperança de que as entranhas hiantes de um menino antipoda
haja sempre uma túlipa de leite ou uma vaca de queijo que lhe mitigue a sede da existência.
Deixa-me coração louco
deixa-me acreditar no grito de esperança lançado pela paleta viva de Rivera
e pelos oceanos de ciclones frescos das odes de Neruda;
deixa-me acreditar que do desespero másculo de Picasso sairão pombas
que como nuvens voarão os céus do mundo de coração em África.

(1967)

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Cinefilia – dicas de filmes

No dia em que descobrirmos o mistério da poesia, descobriremos também o mistério da música.

É mais ou menos com essas palavras que o estudioso Segismundo Spina aborda a relação íntima que existe entre essas duas artes em seu livro Na madrugada das formas poéticas (Ateliê, 2002).

Para quem se interessa por essa riquíssima relação é fundamental assistir ao documentário Palavra encantada (2009), de Helena Solberg.

Valendo-se de entrevistas e depoimentos de mestres da música brasileira, tanto os clássicos quanto os mais jovens, o filme explora a profícua ligação entre palavra falada e palavra cantada.

O tema é tão bom e tão rico que poderia render uma verdadeira série, com muitas horas de filme. O único senão que fica para o documentário é, portanto, o “gostinho de quero mais”.

Vejam aqui o trailer:

“Rio de-Janeiro, Minas”, de Marily da Cunha Bezerra (1991)

Esse curta-metragem, que reencontrei um dia destes no Youtube, é a adaptação de um trecho do romance Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa.

Vale a pena conferir.

O curta pode também ser encontrado no site Porta Curtas

http://portacurtas.org.br/filme/?name=rio_de_janeiro_minas5235

“Desnorteio”, de Paula Fábrio, na TV São Judas

O grande romance de estreia da escritora Paula Fábrio – uma das experiências mais intensas que tive como leitor nos últimos tempos – é abordado, ao lado de Boatos do Corpo, de Marcelo Donatti, no programa Arteletra Literatura.

Os dois títulos foram publicados pela editora Patuá, que vem realizando com protagonismo um investimento sério em autores estreantes.

Confiram a entrevista.

Cinefilia – dicas de filmes

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Indico com veemência essa contundente obra-prima dirigida por Michel Franco (México, 2012). É um filme fundamental para se pensar a sociedade contemporânea, na qual muitas vezes o “show da vida” vale mais do que o convívio respeitoso entre as pessoas e a competitividade truculenta tende a mutilar subjetividades.

Imperdível, para adolescentes, pais, professores e cinéfilos em geral.

 

As pequenas que incomodam – por João Faccio

Abaixo, reprodução de texto de João Faccio no site Mais 1 livro sobre o papel heroico das pequenas editoras, seguido da entrevista com Eduardo Lacerda, editor da Patuá. 

As pequenas que incomodam

Elas são, muitas vezes, responsáveis pela verdade.

Durante os ataques americanos contra o Afeganistão a secretária de estado dos Estados Unidos, Condolezza Rice, convocou os grupos de televisão norte-americanos para que não mostrassem cidadãos feridos, machucados ou em estado de pânico na programação. E esse comunicado não ficou resumido à TV. Durante esse tempo, nenhuma editora de renome publicou qualquer livro com críticas ao assunto ou ao governo Bush. Coube às pequenas editoras jogarem os fatos no ventilador – e aí sim, as “grandes” editoras seguiram suas publicações anti-Bush.

Elas lançam novos autores para as editoras maiores relançarem depois.

Vale lembrar que, no mercado americano, 80% dos livros lançados por editoras pertencem a um grupo de cinco grandes empresas. Os vinte por cento são divididos entre pequenas e médias editoras, muitas (muitas mesmo) vezes responsáveis por lançarem novos autores e os colocarem no grande mercado, ou seja, muito do que se vê no grande mercado editorial já pode ter sido lançado (e menosprezado) anos antes, por um selo menor.

Elas não pensam exatamente – e somente – no lucro.

As pequenas casas precisam, como qualquer ambiente composto por humanos, de dinheiro para se manter. Para lançar novos livros, para pagar funcionários, para pesquisar, para pagar contas, para uma série de coisas. O curioso é que, por mais que frequentemente as pequenas precisem urgentemente de verba (para pagar qualquer um dos pontos acima), elas insistem em buscar qualidade. E aqui entram três ótimos exemplos disso: a Não Editora, a Dublinense – estas do Rio Grande do Sul – e a Patuá, de São Paulo.

Elas não cansam.

Ao mesmo tempo em que as publicações virtuais, e-books e outros crescem continuamente, as pequenas continuam a investir nos livros impressos. E é assim que se alastram em nosso país: na contramão do mercado e na via da qualidade. Elas não prezam somente por autores de qualidade e relevância literária para o nosso contexto, mas também por boa qualidade gráfica e suporte editorial. E é assim – e vai continuar sendo, por um bom tempo – que muitos novos grandes autores serão revelados.

Elas sobrevivem.

Conversei com o Eduardo Lacerda, editor da Patuá, sobre o que é sobreviver no mercado editorial brasileiro. Confira a entrevista a seguir.

[Faccio] Como você vê o mercado editorial brasileiro atual?

[Lacerda] Se pensarmos na estrutura editorial no/do Brasil podemos dizer que existem diversos mercados editoriais. Existem as grandes editoras, as editoras alternativas, as sob demanda, as de livros objeto e de arte, as que agora trabalham com e-book.

Mas, de uma maneira geral, nunca foi tão fácil e barato produzir um livro. O grande desafio ainda é conseguir distribuí-lo e encontrar leitores. Pensa-se muito no ‘mercado’ editorial, mas pouco na formação de público leitor.

Você pensa que as coisas tendem a melhorar?

Eu acredito que as coisas melhoram quando queremos melhorá-las. Só tenho o desafio com a Patuá porque quis criá-la. Melhorar também pode ser entendido de muitas maneiras. Acho que melhorar, para a Patuá, é continuar recebendo bons títulos e encontrar um público que queira absorver essa nossa produção. Trabalhamos para isso, então acredito que as coisas tendem a melhorar sim.

Quais são as dificuldades de se ter uma editora do porte da Patuá?

A Patuá é uma editora pequena, nossas dificuldades foram criadas a partir de nossas propostas e objetivos: publicar bons livros, de autores estreantes, de maneira gratuita e com qualidade literária e editorial. Eu cuido sozinho da editora, exceto os projetos gráficos, que são realizados por artistas (o que não sou), mas as outras tarefas da editora eu assumo sozinho: a edição, as vendas, a administração da empresa, os envios pelos correios, pago as contas.

Qual é o seu prazer em ter a Patuá?

Não existe um prazer em se ter uma editora, existe prazer em ter contato com bons autores que eu publico. A editora é um veículo para conhecer essas pessoas e trabalhar os livros delas.

Fonte: http://www.mais1livro.com/

Os autores mais bem pagos

 

A Forbes, revista de negócios e economia americana, divulgou a lista dos escritores mais bem pagos do mundo dos últimos doze meses. E.L. James, autora de 50 Tons de Cinza, lidera o ranking com 95 milhões de dólares. James, ex-executiva de TV, ultrapassou nomes habituais da lista, como James Patterson, Danielle Steel e Stephen King.

 

Veja a lista dos 16 autores mais bem pagos:

 

1. E.L. James – US$ 95 milhões
2. James Patterson (O dia da caça) – US$ 91 milhões
3. Suzanne Collins (Jogos vorazes) – US$ 55 milhões
4. Bill O’Reilly (Os últimos dias de Kennedy) – US$ 28 milhões
5. Danielle Steel (O baile) – US$ 26 milhões
6. Jeff Kinney (Diário de um banana) – US$ 24 milhões
7. Janet Evanovich (Um dinheiro nada fácil) – US$ 24 milhões
8. Nora Roberts (Visão mortal) – US$ 23 milhões
9. Dan Brown (O código da Vinci) – US$ 22 milhões
10. Stephen King (Jogo perigoso) – US$ 20 milhões
11. Dean Koontz (O bom sujeito) – US$ 20 milhões
12. John Grisham (O dossiê pelicano) – US$ 18 milhões
13. David Baldacci (Traição em família) – US$ 15 milhões
14. Rick Riordan (Percy Jackson & Os olimpianos) – US$ 14 milhões
15. J.K. Rowling (Harry Potter) – US$ 13 milhões
16. George R.R. Martin (As crônicas de gelo e fogo) – US$ 12 milhões

 

Fonte: http://bibliotecadesaopaulo.org.br