Tenho a honra de publicar, aqui no Prefácio, as ricas impressões de Michelle Krotoszynski sobre um clássico da literatura moderna.
A dualidade humana – Análise sobre o livro Demian, de Hermann Hesse
Demian é uma autobiografia narrada pelo personagem Emil Sinclair, jovem de família tradicional, cristã e de classe alta que, ao cruzar com um enigmático rapaz chamado Max Demian, começa a questionar “verdades” quase inatas e, para ele, até então indubitáveis, desde uma passagem da Bíblia até grandes questões existenciais. A variedade de símbolose o cuidado ao escolhê-los, m marca cativante do alemão Hemann Hesse, reaparecem nesse livro com força.
Sinclair, logo no primeiro capítulo, aos 10 anos de idade, descreve uma distinção entre os “dois mundos” em que vive: o mundo da “luz” – sua casa, família, estudos e religião (tudo o que é puro, amável, limpo, inocente, racional, pacífico e conhecido), onde certamente deveria permanecer para que sua vida fosse bela e ordenada – e o “mundo das trevas” – a rua e o desconhecido; “universo no qual más línguas prometiam perversões, homens embriagados batiam em suas esposas, grupos de moças saíam das fábricas ao anoitecer, vacas pariam e cavalos tombavam ao solo”; o mundo em que coisas monstruosas, atraentes, terríveis e enigmáticas aconteciam. Contudo, Sinclair percebe, a linha que segrega os dois universos é tênue e frágil.
Certo dia, voltando da escola para a casa, Demian apresenta a Sinclair uma interpretação totalmente diferente sobre a história de Caim e Abel, estudada nas aulas de religião, evidenciando outro culpado. Desse modo esclarece o bloqueado pensamento de que as coisas explicadas no colégio são verdades absolutas e não somente um ponto de vista, assim denotando a existência de um significado mais amplo sobre os conceitos apreendidos. Nesse momento é despertado em Sinclair um sentimento provocativo nunca antes experimentado que o levará a situações inusitadas.
O ingresso do protagonista no mundo “obscuro” se dá quando tenta se livrar da imagem de burguês obediente para chamar a atenção do travesso colega Kromer, dizendo que havia furtado maçãs do vizinho. Porém, o vizinho daria uma recompensa a quem delatasse o ladrão e Kromer, sabendo disso, cria um pesadelo na vida de Sinclair, chantageando-o. Demian, ao se deparar com tal situação, auxilia e protege Sinclair, orientando-o a não temer Kromer e sim o enfrentar. Uma grande lição que Demian ensina a Sinclair nessa passagem é a do dever de se livrar do medo a qualquer custo; só assim ele daria chance à evolução pessoal.
A substituição da contraposição entre o mal e o bem pela que existe entre o forte e o fraco (pastor e rebanho) persiste na história como metáfora que leva à busca pelo conhecimento por si mesmo como a substituição da moral do mundo luminoso pela ética pessoal. Nesse ponto, percebe-se claramente apologia às teorias nietzschianas e sua “filosofia do martelo” (H. Hesse era um grande estudioso de Nietzsche) como a transvaloração de todos os valores, e a apresentação do lado dionisíaco do ser de uma forma não demonizada e reprimida, como nos primeiros anos da vida de Sinclair. Demian poderia representar os livros de Nietsche e Sinclair um adolescente os lendo, tamanha a afinidade à obra dele. Demian poderia representar também um professor, algum outro filósofo, um autor, uma situação conflituosa vivida; qualquer questão ou sujeito que impulsione alguém a refletir sobre a moral.
Gostaria de ressaltar um símbolo muito importante apresentado nos últimos capítulos. Sinclair sonha com uma ave saindo do ovo, e quando acorda, pinta essa imagem com cores vivas. No dia seguinte em uma aula qualquer, Demian deixa um bilhete na mesa de Sinclair, que dizia: “A ave sai do ovo. O ovo é o mundo. Quem quiser nascer precisa destruir um mundo. A ave voa para Deus. E o deus se chama Abraxas”. Abraxas representa a dualidade do “bem” e do “mal” no mesmo ser; é o diabo e Deus na mesma divindade. Mas quem é Abraxas? É uma entidade encontrada em muitos manuscritos gnósticos antigos como nos Papiros Mágicos Gregos e no Evangelho Copta dos Egípcios. Essa entidade é também descrita e estudada pelo psicólogo suíço Jung (muito apreciado por Hesse), em 1916, num breve tratado chamado os Sete Sermões aos Mortos.
No final da narrativa pode-se dizer que Sinclair incorpora totalmente as ideias de Demian: “[…] Mas quando vez por outra encontro a chave e desço a mim mesmo, ali onde, no sombrio espelho, dormem as imagens do destino, basta-me inclinar sobre a negra superfície acerada para ver em mim a minha própria imagem, semelhante já em tudo a ele, a ele, ao meu amigo e meu guia.”
Com certeza um dos livros mais bonitos que já li, talvez meu preferido; é um desses livros que deve ser lido na juventude e relido ao longo da vida. Cada reflexão feita pelos personagens são questões filosóficas já questionadas por todos. Ou pelo menos deveriam ser.