Como é tradição do Prefácio, retorno das férias comentando as leituras que fiz no período em que andei afastado das atividades docentes.
Dessa vez foram leituras dedicadas a escritores estrangeiros de língua portuguesa.
Comecei por Predadores, do angolano Pepetela, publicado pela Língua Geral na coleção Ponta-de-Lança (Rio de Janeiro, 2008).
Como já observei em outros posts, a leitura de textos escritos na língua portuguesa falada fora do eixo Brasil-Portugal já é, em si mesma, uma experiência fascinante, que ando procurando cultivar intensamente.
No caso da leitura de Predadores, o fascínio foi garantido com a ajuda da Língua Geral, cujo proposta se vê pela nota à edição:
“Respeitam-se integralmente, nesta edição brasileira de Predadores, as singularidades lexicais, ortográficas e sintáticas do português de Angola.”
O texto de Pepetela flui deliciosamente, seu exame psicológico em geral é convincente (algumas vezes incomodou-me o tom caricatural).
Predadores aborda a história recente de Angola – da descolonização à instauração do regime socialista – como um processo catastrófico que culimou no puro e simples favorecimento de grupos oportunistas, os quais se apropriaram da máquina do Estado para enriquecer, deixando à míngua os projetos revolucionários.
Numa máquina estatal burocrática, mantida por indivíduos preocupados exclusivamente em melhorar suas próprias condições, praticando para isso inclusive crimes graves, o sonho revolucionário se esvai e o espaço fica livre para os mais inescrupulosos interesses, como os de Vladimiro Caposso, protagonista do livro.
Para onde vão então – o leitor se pergunta – os sonhos revolucionários que animaram, não só Angola, mas boa parte daquela África que se descolonizava e buscava encontrar, aos trancos e barrancos, mas com esperança, um destino mais humano?
Na trama de Predadores alguns indivíduos continuam defendendo ideais humanitários; mas suas ações isoladas, embora persistentes, não conseguem converter-se num projeto. No fundo, são apenas gestos que confirmam o diagnóstico que o livro parece sustentar: o de que intenções humanitárias não combinam com Estados socialistas.
O livro me deixou intrigado, indeciso, e até desconfiado, com a mesma reação que tive com outras obras que procuram examinar criticamente as experiências do que se convencionou chamar “socialismo real”: o filme A vida dos outros (2006), do diretor alemão Florian Henckel von Donnersmarck, o livro Libertação, do escritor húngaro Sándor Márai (que, embora em 1945, foi publicado somente após a morte do autor, em 1989).
Questões que me surgem depois de conhecer obras como essas: será que as populações pobres de países como Hungria, Alemanha e Angola teriam alcançado melhores condições de vida sem a experiência do socialismo? Será que essa experiência (agora pensando particularmente no Leste Europeu) não foi a responsável por pautar de outro modo – mais crítico pelo menos – o destino desses países? Última pergunta – e talvez a mais importante: as populações pobres desses países ganharam melhores condições de vida depois da Queda do Muro? Parece-me que não, considerando o desmantelamento do estado de bem-estar social vivido por quase todos os países europeus.
Enfim, começo a pensar que, num mundo como o nosso – que cada vez abre menos espaço para a crítica às desigualdades estruturais produzidas pela lógica capitalista – a insistência em se associar comunismo a barbárie é um caminho simplificador e, convenhamos, bem conveniente para outros tantos ‘predadores’.
A minha segunda leitura de férias foi O ano da morte de Ricardo Reis (1984), de José Saramago.
O autor português, como muitos sabem, sempre exigiu que as edições de sua obra no Brasil saíssem sem qualquer revisão, de modo que ler Saramago significa sempre entrar em contato com um dos mais gloriosos prazeres literários para um leitor brasileiro: o duplo movimento identificação-diferenciação, o de transportar-se para outra língua sem sair da sua.
Minha paixão pela literatura desse autor surgiu exatamente há vinte anos, em 1992, quando O evangelho segundo Jesus Cristo era quase moda entre alguns círculos de leitores. A paixão se confirmou logo depois, com a leitura de Manual de pintura e caligrafia e, mais recentemente, com O memorial do convento.
Para os leitores de Fernando Pessoa, O ano da morte de Ricardo Reis pode ser um verdadeiro fetiche. Saramago – num desafio ousado, do qual, acredito, sai vitorioso – procura dar continuidade à história do heterônimo pessoano. Vejamos que jogo intricado é esse: um ser inventado (Ricardo Reis) teve a sua não-vida inconclusa pelas mãos de seu criador (Fernando Pessoa). Outro criador (José Saramago) tomou para si a missão de reanimar essa não-vida para dar-lhe de volta aquilo que ela sempre teve: uma vida apenas literária. A lógica se complexifica ainda mais quando levamos em conta que: a personagem Ricardo Reis no livro de Saramago é, fundamentalmente, um não-ser, alguém apartado do que existe à sua volta. Uma personagem que procura o tempo todo alhear-se de tudo o que venha a pesar sobre seus ombros, num estoicismo egocêntrico e mesmo doentio.
Vertiginoso? Sim, e ainda mais quando se vê que a intenção fundamental de Saramago é desafiar a impassibilidade desse ser, atirando-o contra a força da mundanidade, com toda sua violência e prazer: como se quisesse dar-lhe vida (humana) finalmente.
Vertiginoso? E mais ainda se considerarmos que a sintaxe saramaguiana são como corredores compridos ou escadas encaracoladas que perdemos o fôlego para percorrer, e de onde não se sai tão facilmente.
Sim, e também é vertiginoso ver Ricardo Reis encontrando Fernando Pessoa, que existiu de facto, mas que, no tempo da narrativa, está morto. Ou seja: o não-ser (que nunca existiu) dialoga com um ser (que existiu) morto.
É supreendente a naturalidade com que Saramago – em sua fingida imparcialidade, com aquele risinho machadiano que escapa sobretudo ao final dos períodos – aborda a diferença entre a vida e a morte – uma diferença mínima; ele nos parece dizer algo como: a diferença que separa um homem vivo de um morto não é maior do que a que separa um homem vivo de outro homem vivo.
Também é surpreendente a relação que Saramago estabelece entre as convicções monarquistas de Ricardo Reis e o contexto da ascensão do fascismo na Península Ibérica e Europa como um todo – relação que talvez seja uma das razões de ser do livro de Saramago.
Sair desse livro e querer voltar para as páginas da história do Salazarismo é quase inevitável. É também inevitável revisitar, não só a obra de Ricardo Reis, mas de todo o Fernando Pessoa, coisa que vem sempre a calhar.
É isso. Fico por aqui.
Como prometido, registrei minhas leituras de férias com breve impressões a respeito.
Deixo agora a palavra com o leitor: para que registre, nos comentários, suas leituras de férias, como no semestre passado, formando uma espécie de fórum.
Em tempo:
– as fotos espalhadas pelo post são de André Kertèsz, que publicou em 1971 o livro On reading: são flagrantes de pessoas lendo, em diversas posições e situações.
– que este ano de Drummond (nascido em 1902) e da Semana de 22 (que completa seus 90 anos), seja também o ano de muitas leituras, grandes experiências estéticas e muitas aprendizagens.
Abraço a todos.
NOTA: Li somente depois de ter postado o texto, no Estadão de hoje, que o famoso crítico Massaud Moisés acredita que a ideologia em Saramago limitou sua literatura. Respeito demais a erudição do Prof. Massaud Moisés, cujos manuais sempre me ajudaram muito, mas, sinceramente, não consigo ver o homem senão como ser ideológico. Negar a ideologia é, para mim, como negar a racionalidade ou a subjetividade. É uma batalha (positivista ou neoclássica) perdida. Ficaria mais bonito, para o universo das Musas, se Saramago, em vez de ideologia (vermelha!) tivesse ‘cosmovisão’? Poxa, mas aí chama o Bilac, por favor.