Choque e encantamento, assombro e fascinação, novidade e decadência, êxtase e vazio são alguns dos muitos paradoxos da modernidade. Nos diferentes rumos tomados pelas literaturas do século XX, esses antagonismos sobreviveram de maneira intensa e, no caso da língua portuguesa, encontraram em Álvaro de Campos[1], heterônimo de Fernando Pessoa (1888-1935), uma de suas grandes expressões:
Orgia intelectual de sentir a vida!
e
E a vida dói quanto mais se goza e mais se inventa
Os versos são de Passagem das horas [2], poema da dúvida entre a renúncia e a integração, entre a saciedade e o tédio, o êxtase e o enjoo diante desse múltiplo espetáculo que é o mundo moderno.
Campos é uma figura farta, abarrotada:
Trago dentro do meu coração
Como num cofre que não se pode fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive,
Todos os portos a que cheguei
É o heterônimo mais cosmopolita de Pessoa, e ao longo do poema indica ter visitado Macau, Singapura, desfila países, terras, línguas e culturas. Mas essas excursões pelas cidades do mundo também são excursões pelo seu eu tresvariado, e as duas viagens – por dentro e por fora – são vividas como um grande desespero: medo de não abarcar, não apreender o que se dá a ver, e, por outro lado, medo de apreender demais, abocanhar de vez a imensidão de coisas que seu eu – falível, limitado, enfim, humano – não poderia nunca conter.
Para além de suas viagens, “todas as paisagens” que viu ou sonhou, Campos lamenta:
… tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero
Campos não sente falta de sentido, pois os tem em excesso:
Experimentei mais sensações do que todas as sensações que senti
E essa fartura de sentidos, por outro lado, não lhe satisfaz – parecem ainda pouco ou talvez sejam demais para ele:
Não sei se a vida é pouco ou demais para mim.
Não sei se sinto de mais ou de menos, não sei.
De qualquer modo, conclui:
era melhor não ter nascido
A debater-se entre sentir de mais ou de menos, é como se Campos não encontrasse espaço para viver de modo efetivo, como se não pudesse nunca existir de fato. É um ser que não se basta. E isso é muito parecido com o que, de maneira geral, todos somos um pouco em nossos dias.
Deparando-se com o mundo multiforme que se exibe à sua frente, como horizonte ao mesmo tempo possível e inabarcável (a imensidão labiríntica de ofertas e solidões de uma cidade como a nossa São Paulo) Campos é possuído pela fúria desejosa de contê-lo, tentando trazer para si toda a ruidosa experiência do planeta, todos os caracteres: das prostitutas, dos homens inferiores e superiores, do soldado, do assassino, dos atletas. Quer todos os lugares, todos os costumes, todos os movimentos e as especulações.
Passa tudo, todas as coisas num desfile por mim dentro,
E todas as cidades do mundo, rumorejam-se dentro de mim …
Meu coração tribunal, meu coração mercado,
Meu coração sala da Bolsa, meu coração balcão de Banco,
Meu coração rendez-vous de toda a humanidade,
Meu coração banco de jardim público, hospedaria,
Estalagem, calabouço número qualquer cousa
É o ser “esponja”, que procura absorver em si todos os sentidos de seu tempo, na esperança de com isso se sentir inteiro. E isso lhe provoca fascínio. E isso lhe provoca, fatalmente, imenso desespero.
Multipliquei-me, para me sentir,
Para me sentir, precisei sentir tudo,
Transbordei, não fiz senão extravasar-me
O lema de Álvaro de Campos é “sentir tudo de todas as maneiras”. Ele se expande e se torna outros homens. Como não é ninguém, precisa ser todos; como não é nada, precisa ser tudo. Por intermédio dos outros – todas as pessoas – acredita ser possível tornar-se finalmente alguém. Só que a multidão é informe, é amorfa; ser todos é não estar em si: ser coisa alguma, nada, ninguém. E tudo isso desagrada e desespera. E tudo isso é expresso em voz exaltada.
Conhecendo a abundância do mundo moderno, Campos conclui que esse tudo é nada: vazio fastidioso da experiência.
A poesia de Álvaro de Campos é um dos convites mais intensos para se pensar, sentir e viver na carne os sentido ambíguos da modernidade.
Fórum: seu Pessoa predileto
Sei que, entre os leitores do Prefácio, muitos são os aficcionados em Álvaro de Campos e, mais genericamente, em Fernando Pessoa. Sugiro então um novo fórum, desta vez partindo da pergunta: qual é seu heterônimo e/ou qual é seu poema preferido do imortal poeta português?
Aguardo respostas.