“Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios”, de Beto Brant

Beto Brant é o tipo de diretor com quem mantenho uma fidelidade quase canina.

Vi a maioria de seus filmes no cinema e, mesmo sendo ultimamente um cinéfilo mais amigo das sessões caseiras – na tv ou dvd – que das salas de exibição, na primeira oportunidade que tive fui assistir ao seu novo filme, que está em cartaz ainda em algumas salas de São Paulo.

Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios é uma adaptação do romance homônimo de Marçal Aquino. Dizer qual dos dois é melhor – o livro ou o filme – é bastante difícil. É também inútil: o filme é uma obra à parte, autônoma.

Claro que explorar a relação entre os dois – livro e filme – pode ser agradável e seguramente enriquecedor, para o cinema e para a literatura. Aliás, na produção de Brant, o tema da adaptação chega a ser obrigatório: suas duas obras-primas O invasor (2001) e Crime delicado (2005) são inspiradas em narrativas literárias, de Marçal Aquino e Sérgio Sant’Anna, respectivamente.

O que considero equivocado é o espectador buscar, numa obra cinematográfica, a exata experiência que viveu ao ler um livro. Fidelidade, no campo da adaptação artística, é uma palavra duvidosa, mesmo em se tratando de Marçal Aquino, um escritor que faz seus livros quase como roteiros de cinema. É sempre bom lembrar que a arte fílmica é algo de outra natureza e, sendo o filme bom ou ruim, deve ser julgado pelo que alcança como objeto relativamente autônomo, desprendido de sua fonte inspiradora.

O livro de Aquino é o mais expressivo para mim de toda a sua obra. Um texto literário envolvente, impactante, devorador. Não indicá-lo ao redigir este post é praticamente impossível. Mas – embora seja essa a vontade da maioria esmagadora dos amantes da literatura, eu incluso – a leitura anterior do livro de Aquino é dispensável para a fruição do filme de Brant. Aliás, nada impede que a primeira experiência seja ver o filme. Nada impede também que ela seja a única.

O que procuro reforçar aqui é a importância de valorizarmos a obra cinematográfica pelo que ela tem a oferecer por si mesma. É muito difundida a ideia de que as adaptações cinematográficas em geral “estragam” os livros em que se inspiram. Em resposta, chamo a atenção para alguns casos expressivos como: Vidas secasA hora da estrelaSão Bernardo, Memórias do cárcere, Céu de estrelas (para ficar apenas em obras brasileiras): se não podemos falar em equivalência ou igualdade qualitativa (mensuração no mínimo ousada), mais difícil é dizer que são filmes que “estragaram” os livros adaptados.

Interessante lembrar a opinião do diretor inglês Alfred Hitchcock, que, com sua característica espirituosidade, dizia que um de seus talentos era transformar maus livros em excelentes filmes…

Enfim, o filme de Beto Brant é um espetáculo à parte, não precisa da obra de Aquino para contentar o espectador.

Minha dica portanto é: vá ao cinema e veja o grandioso filme realizado pelo mais que comprovado talento de Beto Brant, com um elenco primoroso (destaque para a atuação de Gero Camilo e José Carlos Machado, além dos protagonistas, obviamente) e a característica capacidade de Brant de abordar temas decisivos  e profundos – relações humanas e dramas sociais – com a complexidade que eles merecem, sem espaço para a fetichização da violência (Cidade de Deus) ou a visão paternalista da miséria (Central do Brasil) e sem espaço também para maniqueísmos.

Beto Brant sempre acerta no tom.  Por isso, para mim, é o maior, o mais importante cineasta brasileiro de nossos dias.

Abaixo o trailer do filme:

Carta de Graciliano para Antonio Candido, em 1945

Rio de Janeiro, 12 de novembro de 1945

Antonio Candido:

Só agora, lido o último artigo da série que V. me dedicou, posso mandar-lhe estas linhas e conversar um pouco. Muito obrigado. Mas não lhe escrevo apenas por causa dos agradecimentos: o meu desejo é trazer-lhe uma informação ajustável ao que V. assevera num dos seus rodapés.

Arriscar-me-ia a fazer restrições ao primeiro e ao segundo, se isto não fosse considerado falsa modéstia. E impertinência: com as vivas atenções dispensadas a meu romance de estreia, foram apontados vários defeitos, o que de certo modo atenua a parcialidade otimista.

Onde as nossas opiniões coincidem é no julgamento de Angústia. Sempre achei absurdos os elogios concedidos a este livro, e alguns, verdadeiros disparates, me exasperaram, pois nunca tive semelhança com Dostoiévski nem com outros gigantes. O que eu sou é uma espécie de Fabiano, e seria Fabiano completo se a seca houvesse destruído minha gente, como V. muito bem reconhece.

Por que é que Angústia saiu ruim? Diversas pessoas procuraram razões, que não me satisfizeram. Olívio Montenegro usou frases ingênuas e pedantes, misturando ética e estética. João Gaspar Simões afirmou que o americano é incapaz de introspecção – e com esta premissa arrasou-me. Veja só. Nada há mais falso que um silogismo. Álvaro Lins veio com aquele negócio de tempo metafísico. Mas isso diz pouco, não é verdade? Se eu constituísse uma exceção à regra de João Gaspar Simões e contentasse Olívio Montenegro e Álvaro Lins,Angústia não deixaria de ser um mau livro, apesar de haver nele páginas legíveis.

Por que é mau? Devemos afastar a ideia de o terem prejudicado as reminiscências pessoais, que não prejudicaram Infância, como V. afirma. Pego-me a esta razão, velha e clara: Angústia é um livro mal escrito. Foi isto o que o desgraçou. Ao reeditá-lo, fiz uma leitura atenta e percebi os defeitos horríveis: muita repetição desnecessária, um divagar maluco em torno de coisinhas bestas, desequilíbrio, excessiva gordura enfim, as partes corruptíveis tão bem examinadas no seu último artigo. É preciso dizermos isto e até exagerarmos as falhas: de outro modo o nosso trabalho seria inútil.

E aqui vem a informação a que me referi. Forjei o livro em tempo de perturbações, mudanças, encrencas de todo o gênero, abandonando-o com ódio, retomando-o sem entusiasmo. Matei Julião Tavares em vinte e sete dias; o último capítulo, um delírio enorme, foi arranjado numa noite. Naturalmente seria indispensável recompor tudo, suprimir excrescências, cortar pelo menos a quarta parte da narrativa. A cadeia impediu-me essa operação. A 3 de março de 1936 dei o manuscrito à datilógrafa e no mesmo dia fui preso. Nos longos meses de viagens obrigatórias supus que a polícia me houvesse abafado esse material perigoso. Isto não aconteceu – e o romance foi publicado em agosto. Achava-me então na sala da capela. Não se conferiu a cópia com o original. Imagine. E a revisão preencheu as lacunas metendo horrores na história. Só muito mais tarde os vi. Um assunto bom sacrificado, foi o que me pareceu.

Esta explicação tem apenas o fim de exibir-lhe o prazer que me causou o seu juízo. Quando um modernista retardatário e pouco exigente me vem seringar amabilidades a Angústia, digo sempre: – “Nada impede que seja um livro pessimamente escrito. Seria preciso fazê-lo de novo.”

Permita-me que apenas toque nos seus estudos relativos a São BernardoVidas secas Infância. Ser-me-ia difícil estender-me sobre eles. O que faço é agradecer. Por muito vaidoso que sejamos, às vezes certas opiniões nos amarram: diante delas ficamos atrapalhados e sem jeito.

Adeus, Antonio Candido. Abraços do admirador e amigo

Graciliano Ramos

Literatura sem bijuterias

Ainda no assunto leituras de férias, acabei de ler ontem O velho Graça, de Dênis de Morais, uma biografia sobre Graciliano Ramos, escritor que venho há anos relendo e estudando, principalmente seu romance Angústia.

Notícias sobre o livro de Morais. É uma obra tocante e admirável, fruto de pesquisa cuidadosíssima e de intensa sensibilidade de leitor, como se espera de uma boa biografia:  sensível sem ser irresponsável e fundamentada sem ser fria. Morais consegue isso.

Abordando o homem e o artista Graciliano Ramos, o autor acaba construindo um panorama da primeira metade do século XX, no Brasil e no mundo.

Curioso como a vida de Graciliano pode ser dividida em duas partes, uma anterior à sua prisão,  quando era um autor praticamente desconhecido e vivia no Nordeste, a maior parte do tempo em cidades alagoanas como Palmeira dos Índios e Maceió e outra posterior à prisão, quando se instalou no Rio de Janeiro e ali começou uma existência mais cosmopolita, com ampla interlocução entre a intelectualidade da época, chegando mesmo, já no fim da vida, a conhecer a União Soviética, a França e a Argentina.

Na primeira fase Graciliano é o humanista apartidário, apenas simpático a ideias progressistas, concentrado em construir seus “bichos subterrâneos”, suas grandes obras de ficção em primeira pessoa: Caetés, São Bernardo e Angústia. Na segunda fase, é o simpatizante e o militante do PCB, autor de um romance em terceira pessoa e duas obras-primas da literatura memorialística: Infância e Memórias do cárcere, que mantêm a intensidade narrativa das obras de ficção, apenas tomando como protagonista a sua própria pessoa. Na primeira fase, Graciliano parece mais ocupado em conquistar seu espaço imaginativo, cultivando monstros pessoais, e depois, distanciado daquelas criaturas matutas, já contextualizado no ambiente urbano e fervilhante do Rio dos anos 30, 40 e 50, parece olhar para o sertão de modo mais distanciado, mesmo em Vidas secas, que ele narra em terceira pessoa, e o gênero das memórias atende perfeitamente à necessidade de recordar e reconstituir o que já não é palpável.

Tocante conhecer os arroubos afetuosos do homem à primeira vista carrancudo. Delicioso confirmar que sempre zelou pela dignidade e pela coerência e que nunca traiu suas convicções mais profundas. Triste vê-lo definhando, ao fim do livro, pobre como um pedinte, mas sempre ao lado da encantadora esposa Heloísa e de alguns de seus filhos, como o escritor Ricardo Ramos, que para mim é outro destaque na obra de Morais.

Fechei o livro ainda mais intrigado com a figura desse homem, meu escritor brasileiro predileto. E hoje, novamente remoendo esse espaço seco e arredio que é o universo de Graciliano Ramos, encontrei este vídeo e decidi postar aqui para que outros conheçam parte da vida desse autor decisivo na literatura e na história do Brasil.

Dados sobre o vídeo encontrados no excelente site Mídias na Educação – NCE – Vídeos (link neste blog):

Graciliano Ramos – literatura sem bijouterias
Documentário da série Mestres da Literatura da TV Escola. Via Domínio Público.

Sinopse
A trajetória de Graciliano Ramos, de prefeito de sua cidade natal até tornar-se escritor. As atribulações pessoais e políticas de Graciliano. Sua obra e seu estilo literário refinado, marcada pelo romance regionalista. O programa mostra uma análise sobre seu principal livro, Vidas Secas.

Ficha Técnica
Direção e roteiro: Hilton Lacerda
Produção: Malu Viana Batista
Realização: Pólo Imagem e TV PUC para a TV ESCOLA/MEC, 2001
Duração: 20’02”

Adeus, Columbus

Acabei de terminar a leitura do primeiro livro de Philip Roth: Adeus, Columbus. Como disse o escritor Saul Bellow, “é um livro de estreia, não de princiante”.

O livro é de 1959, mas foi publicado no Brasil apenas em 2006,  pela Companhia das Letras, em formato pocket, com a tradução de Paulo Henriques Britto.

Trata-se de uma antologia composta pela novela que dá nome ao livro – Adeus, Columbus – e  mais cinco contos: A conversão dos judeus, O defensor da fé, Epstein, Não se julga um homem pela canção que ele canta e Eli, o fanático.

Capa de uma edição francesa da obra de Roth, autor traduzido em vários países

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A obra bem poderia ter como subtítulo  “aspectos da cultura judaica nos Estados Unidos”, porque o que Roth faz basicamente é observar, por ângulos diferentes e com níveis variados de humor cáustico, os modos de vida dos judeus americanos: seus dogmas, seus hábitos – Roth talvez dissesse “suas manias” ou ainda “suas paranoias”. Quem conhece a crítica bem humorada de Woody Allen aos costumes judaicos passeará pelo livro de Roth com alguma familiaridade.

Comentários breves sobre os cinco contos:

A conversão dos judeus é uma sátira aos dogmas religiosos a partir do confronto entre um adolescente e um rabino, o que terá consequências absurdas. Em O defensor da fé, Roth ironiza os usos oportunistas da causa judaica, contando a história de militares, em plena guerra, que se aproveitam do fato de serem judeus para salvar a própria pele. Epstein é a história de um casal judeu de meia idade que começa a viver uma crise terrível depois que a mulher descobre que seu marido contraiu uma DST e que portanto, obviamente, a traiu. O resultado é absurdo. Em Não se julga um homem pela canção que ele canta vemos as consequências da ligação entre um “rapaz de família” e seus colegas de escola bad boys. Eli, o fanático é uma reflexão profunda a respeito da fé e dos dogmas a partir dos grandes contrastes marcados entre tradição religiosa e civilização moderna.

São todas narrativas intrigantes e instigantes, apresentando situações absurdas com consequências tragicômicas.

Mas para mim o ponto alto mesmo do livro é a novela Adeus, Columbus, o primeiro texto, mais longo que todos e muito mais vibrante.

A história é a do primeiro amor de Niel Klugman, contada por ele mesmo. A história que ele viveu com Brenda Patimkin.

Klugman é um bibliotecário pobretão, Brenda é de família riquíssima. Ambos são judeus.

Eis como é descrito o primeiro encontro, logo nas primeiras linhas:

A primeira vez que vi Brenda ela me pediu para segurar seus ócvlos. Então foi até a ponta do trampolim e, apertando os olhos, mirou a piscina; se estivesse vazia, Brenda não perceberia o fato, míope que era. Deu um belo mergulho e um instante depois voltava nadando para a beira da piscina, mantendo a cabeça, de cabelos avermelhados cortados curtos, erguida à frente, como se fosse uma rosa de caule longo. Rapidamente chegou à borda e veio ter comigo. “Obrigada”, disse, os olhos cheios d’água, mas não da piscina. Estendeu a mão para pegar os óculos, porém só os pôs nos lugar depois que me deu as costas e se afastou. Fiquei vendo-a ir embora. Suas mãos de repente apareceram atrás dela. Segurou a bainha do maiô com o polegar e o indicador e enfiou no devido lugar o pouco de carne que estava aparecendo. Meu sangue ferveu.

Brenda já aparece aí com algumas de suas marcas mais decisivas:  é desembaraçada (“despachada” é mais preciso), dissimulada, provocadora, sensualmente pueril, e pode com isso facilmente enlouquecer os sentidos do pobre Klugman.

Mas a sedução é também a da narrativa em si mesma sobre o leitor, que se sente imediatamente envolvido pelo texto. Não somente pelo que ele traz de mensagem sensual ou até sexual (vale lembrar que nesse texto não temos um Roth licencioso, como o de O complexo de Portnoy), mas pelo seu convite imperioso ao universo denso e delicado, sutil e sinuoso da inesquecível primeira experiência amorosa. Em tudo o que ela tem de hipnótico. Em tudo o que tem de caloroso. Para repovoar esse mundo de cheiros, cores, temperaturas, sons e ecos tão difusos só mesmo uma memória privilegiada – uma memória sinestésica, como a apresentada pelo narrador de Roth.

O mais fenomenal é que Roth visita esse universo delicado do primeiro amor sem se render ao sentimentalismo fácil, apresentando – já em seu primeiro livro – um verdadeiro exercício de fuga da pieguice, com sua voz despojada – mesmo quando abandona provisoriamente o humor e toca o puramente lírico. Isso acontece porque Adeus, Columbus é uma revisitação das histórias de primeiro amor, uma espécie de paródia, não exatamente no sentido de imitação cômica, mas no sentido de retomada, de homenagem, de releitura. Como se nos propusesse:  Vamos ver de fato como é esse negócio que chamam de primeiro amor.

A história de Niel não é exatamente a de Brenda. Brenda vive numa mansão de proporções infinitas (o leitor, se aventurando por ela, parece se perder em seus múltiplos cômodos). Niel é pobre, mora de favor na casa de uma tia. Essa tia, criatura neurótica, parece figurar na galeria das personagens de Allen, com seus rompantes patéticos dirigidos a Niel: “Uma criança na Europa dava pra fazer três refeições completas só com o que você deixa no prato.”

O mundo de Niel, que comparado ao dos Patimkins é um submundo, tem contato muito mais direto com mundos ainda mais subterrâneos – o dos negros pobres dos States, exemplificado na personagem graciosa do negrinho que adora as pinturas de Gauguin. Essa figurinha simpática a certa altura surge na biblioteca e, com seu carregado sotaque sulista, pergunta a Niel:

– Ô, onde é a seção de artipraste?

Niel num primeiro momento não entende – assim como o leitor – que o garoto, presença bastante improvável naquele ambiente letrado, procurava pela seção de artes plásticas.

Niel o conduz até ela e – novamente assim como o leitor – supreende-se com a enorme empolgação que o menino demonstra em relação às pinturas de Gauguin e com a assiduidade com que passa a frequentar aquela seção da biblioteca para admirar os habitantes do Taiti, espécie de oásis pictórico que o menino define como um lugar onde “ninguém vive gritando e berrando”, como provavelmente devia ser o seu mundo. E por um minuto consideramos o milagre da arte. Não na sacralidade do nome de Gauguin, não na burocracia biblioteconômica, não nos bancos da escola: mas na experiência viva e pura das formas e das cores como sonho e pulsão, como possibilidade de ressignificação da vida.

As pinturas do francês Paul Gauguin (1848-1903) encontram o olhar de um expectador muito improvável na narrativa de Roth

A vida do jovem Niel divide-se então entre dois mundos opostos: o da biblioteca frequentada pelo negrinho, com toda sua simplicidade, e o da mansão dos Patimkin, com toda sua opulência.

Mas e o amor, o primeiro – ELE -, que destino terá para Niel? Que destino terá para Brenda?, jovem despachada, desinibida, para quem o mundo parece estar disposto sempre como uma porta escancarada, à espera de seu triunfo.

Quem pensa, contudo, que Brenda é somente uma riquinha desmiolada se engana. Ela é espirituosa e é também enigmática – ela é, para o coração de um jovem, irresistível. E aí está também o trunfo de Roth: sua criatura feminina é apaixonante. Com ela, Niel (e o leitor, sempre seguindo os passos dele) tem a sensação de flutuar pelos espaços ou ser arrastado por uma corrente de água (a água, a piscina – presenças insistentes no texto), sempre numa aura fantasiosa, como se tudo fosse um sono bom, um sonho.

Essa sensação de sentidos dormentes, de atmosfera onírica me fez associar a novela de Roth ao filme de Benjamin Braddock A primeira noite de um homem, em que se apresenta um convite parecido para o dilatar de nossa percepção, fazendo-a captar os detalhes mínimos mas decisivos na primeira experiência amorosa – essa experiência que é mais resgatada pela memória difusa que pela lógica ordenadora da razão. Memórias que são borrões, não linhas.

“A primeira noite de um homem” (1967), de Benjamin Braddock, com o estreante Dustin Hoffman: o enredo é bem diferente da novela de Roth, mas a atmosfera onírica e inocente do amor na tenra idade parece ser a mesma

Como Capitu para Bentinho (Dom Casmurro, Machado de Assis) ou como Madalena para Paulo Honório (São Bernardo, Graciliano Ramos), Brenda será para Niel, eternamente, um mistério. Porque a imagem fulgurante do primeiro amor não é somente inesquecível – ela é também, cruelmente, incompreensível:

Como conhecê-la? eu me perguntava, pois enquanto ela dormia fiquei pensando que tudo o que eu sabia a seu respeito era o que se podia ver numa fotografia.

Entender o primeiro amor (seria essa a busca do Philip Roth maduro?) não é entender o outro, mas a si mesmo.

E por isso Niel conta sua história. Por isso conta a sua Bentinho. Por isso faz o mesmo Paulo Honório.

E não é o que fazemos, todos nós, dia após dia?